Vários procedimentos burocráticos não têm razão de ser e servem apenas para nos ocupar em trabalhos inúteis.
Cleber Dias
A impossibilidade de aglomerações apresenta desafios para as universidades. Como estudar sem bibliotecas? Todos os materiais já estariam disponíveis na internet? Alunos podem aprender sem professores a lhes ensinar? Quão indispensáveis, afinal, são o cuspe e o giz, ou o cuspe e o Power Point? Como aplicar provas com a certeza de que são os alunos e não os seus primos ou namoradas que estão respondendo as questões?
A combinação de apego aos costumes com indisposição ao experimentalismo parece tornar as mudanças em curso especialmente dramáticas, ou cômicas, a depender do ponto de vista. As anedotas já se avolumam. A repetição de velhos esquemas de ação diante de novas circunstâncias é receita para a ineficiência e o desperdício de recursos. Alguma incompreensão de que ambientes virtuais funcionam de outro modo apenas agrava o quadro.
Diferente do que ocorre na graduação, onde as seleções são centralizadas, o ingresso na pós-graduação é organizado com pouca interferência das reitorias. Nas pós-graduações, vive-se mais próximo do ideal de uma comunidade autônoma. Pareceria bom, não fossem os próprios professores os principais responsáveis pela gestão da coisa. O inferno somos nós.
Desde os anos 50, a partir do trabalho de Robert Merton, cientistas sociais vêm abordando o crescente processo de burocratização da vida universitária, que pode ser definida como a subordinação das atividades intelectuais a critérios gerenciais e administrativos, quando não a meros formalismos regimentais –em geral incapazes de gerir e administrar o que quer que seja.
No Brasil, como em outros lugares, a peneira que dá acesso às prestigiosas cadeiras de mestrado e doutorado é o resultado de uma bateria sucessiva de exames, que envolve geralmente a análise do currículo, a avaliação de um projeto de pesquisa, a realização de um teste de proficiência em idioma estrangeiro, uma arguição oral e uma prova escrita sobre conteúdos teóricos.
É um sistema mais ou menos extenuante, que em teoria não deixa a desejar aos das melhores universidades do mundo. Sua eficácia, no entanto, é apenas relativa. Leia uma tese escolhida ao acaso e tire suas conclusões. Mais do que apenas avaliar a capacidade acadêmica dos aspirantes à nobreza intelectual, esses exames são também oportunidades para a prática do sadismo burocrático. Porque simplificar, quando é possível complicar?
Com frequência, provas se convertem em mera ocasião de atestar a idoneidade moral de estudantes, sob a suposição, cara a todo brasileiro, de que inocentes são culpados até que se prove o contrário. É preciso, portanto, criar expedientes para assegurar que o indivíduo é quem diz ser, que é ele mesmo quem fará a prova que diz querer fazer, que foi ele quem escreveu o projeto que diz ter escrito e que todos os itens do seu currículo, mesmos os mais banais, têm a devida comprovação – retroalimentando, assim, a infinita e infernal espiral burocrática dos certificados e declarações. Desafios burocráticos dessa ordem são mais que tudo testes de perseverança e resiliência. Tornar-se Ministro da Educação seria mais fácil.
Tudo acaba por ser estruturado sob uma ótica policialesca, deixando em segundo plano a avaliação das competências acadêmicas propriamente ditas. Com tanto tempo e energia dedicada a vigiar e controlar, quem poderia se ocupar do cultivo do espírito? Foi Fernando de Azevedo quem dissera, em carta a Gilberto Freyre, datada do longínquo 1935, que “a burocracia pedagógica é a mais esterilizante”.
Se acaso todos os procedimentos burocráticos se mostrarem claramente incapazes de cumprirem o que se propõem, como inibir ambições fraudulentas, dá-se de ombros e vai-se adiante. Nenhum argumento racional é capaz de conter o impulso burocrático. Aquilo é um Leviatã para a geração de trabalho inútil com o fito de dificultar os trabalhos úteis. A burocracia é agora uma espécie de moto-contínuo.
Pelas circunstâncias, tornou-se comum que candidatos ao mestrado e ao doutorado realizem provas de suas casas, mas diante do olhar vigilante de câmeras de vídeo. Naturalmente, ninguém pode assegurar que a pessoa diante da câmera é a mesma que se inscreveu no concurso, nem que ela não esteja recebendo ajuda ou instruções.
Não obstante todas as limitações, tem se realizado as provas sob a vigilância das câmeras. A justificativa é que mecanismos de controle de fraudes são necessários, embora mecanismos de controle de fraudes inexistam aí.
Esses falsos controles, se não podem controlar nada afinal, certamente tornam todo o processo bastante complicado, exigindo, crescentemente, novos e mais procedimentos burocráticos. A realização de um exame de seleção para a pós-graduação no Brasil é a realização prática da utopia da norma, onde os prazeres secretos da burocracia se revelam em seu esplendor.
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