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Cleber Dias
Apoiadores do governo Bolsonaro regozijaram com as manifestações do dia 7 de setembro. “A maior da história”, exageraram alguns. “O povo em defesa da liberdade”, distorceram outros.
Antes de elogiar ou criticar genericamente as manifestações, deve-se perguntar o que estava sendo reivindicado. Diferente do que disseram os próprios manifestantes nas redes sociais, por si só, o livre exercício de manifestações não é necessariamente bom. Alemães que livremente protestassem na década de 1930 em favor do direito de expatriar, prender e assassinar judeus acaso seria positivo? Uma coisa desse tipo deveria ser celebrada? Do mesmo modo, fazendeiros nos Estados Unidos do século 19 que protestassem livremente pelo direito de escravizarem negros seria virtuoso?
No Brasil do século 21, então, devemos nos perguntar contra ou a favor do que exatamente os manifestantes que estiveram nas ruas no dia da independência estavam engajados. O mérito das reinvindicações importa.
Em primeiro lugar, manifestavam-se em favor do governo Bolsonaro. É evidentemente errado que essas foram as maiores manifestações da história recente do Brasil, embora tampouco se possa subestimá-las, especialmente diante da ignorância do seu líder e do fracasso de seu governo, inteiramente incapaz de articular qualquer medida relevante. Todas as realizações políticas dos últimos tempos – bastante modestas – aconteceram apesar de Bolsonaro, não por causa dele. Assim mesmo, em São Paulo, estimativas oficiais falaram em 125 mil pessoas, no que é muitíssimo menos do que esperava o governo, mas ainda assim expressivo. Na verdade, essas foram as maiores manifestações organizadas por um governo na história recente do país, sendo que o envolvimento de um governo com a organização de manifestações é apenas mais um capítulo da longa lista de aberrações que marcam o governo Bolsonaro. Não é legítimo valer-se do acesso privilegiado aos recursos públicos que a Presidência da República garante a fim de organizar manifestações que apoiem o próprio governo. Isso desequilibra o jogo da disputa política. Por isso mesmo, governos não organizam e não devem organizar manifestações.
É bastante sintomático dessas inadequações que os discursos de Bolsonaro nesse dia tenham mencionado o STF e o Ministro Alexandre de Moraes, que podem torna-lo inelegível para as eleições de 2022 na esteira do processo das fake news, mas não tenham sequer citado os muitos problemas reais que afligem a sociedade brasileira: a estagnação econômica, o alto índice de desemprego, o aumento da pobreza, a carestia de alimentos, a alta de inflação e assim por diante. Bolsonaro despreza o Brasil. Sua única preocupação é manter-se no poder. Usar as cores da bandeira nacional, no dia da independência do país, em manifestações lideradas por um político que tem por objetivo apenas perpetuar-se no poder é um ultraje.
Além de apoio ao governo, havia também faixas reivindicando “intervenção militar já”, isto é, a instalação de um regime político em que militares tivessem plenos poderes, não sendo possível contestações ou obstruções vindas de civis. Trata-se, em suma, da reinvindicação da abolição do regime democrático, marcado por eleições regulares e pela pluralidade de opiniões, em favor de uma ditadura. Muito incoerentemente, reivindica-se uma ditadura sob a justificativa de se evitar uma ditadura.
Havia ainda dizeres reivindicando impeachment de um ou de todos os Ministros do STF, bem como faixas em favor do seu fechamento, no que representaria também a extinção de um dos pilares de qualquer regime democrático, que é a existência de um sistema de justiça, a fim de salvaguardar os direitos dos cidadãos. Dado que o Poder Judiciário brasileiro se mostra errático, decidindo às vezes ao sabor das circunstâncias e à revelia da letra da lei, a única solução que apoiadores de Bolsonaro conseguem imaginar é a substituição dos Ministros ou mesmo a extinção da Suprema Corte. Falta de imaginação pouca é bobagem. Falta-lhes logo muita imaginação.
Embora tudo isso seja bastante bizarro, no fundo das aparências há aí qualquer coisa de potencialmente virtuoso.
Parte das motivações para protestos desse tipo podem ser encontradas na própria cultura política brasileira, que é bastante autoritária e por isso mesmo indisponível às longas tratativas que marcam os processos democráticos. Ao invés disso, parece haver preferência por procedimentos do tipo manda quem pode e obedece quem tem juízo. Não por acaso, critica-se bastante atualmente a negociação política propriamente dita, como se a imposição, ao invés da negociação, fosse superior ou preferível. Não é.
Outra parte das motivações para esses protestos, porém, pode ser encontrada numa revolta difusa e ainda mal formulada contra o desencanto e a descrença de que a política democrática, com todas as suas negociações imperfeitas, possa ajudar a resolver os problemas do Brasil. É neste ponto que reside o potencial virtuoso da loucura bolsonarista.
Embora deva-se reiterar o valor da política democrática como o modo privilegiado para a resolução de problemas, insatisfações desse tipo têm alguma razão de ser. Apesar de toda a esperança que marcou a redemocratização nos anos 80, de modo talvez exagerado, temos agora muitos motivos para frustrações diante das promessas da democracia brasileira. Vivemos em um país com carga tributária elevada, próxima daquelas praticadas por lugares como Portugal ou Canadá, mas com serviços públicos semelhantes aos disponíveis aos cidadãos da Guatemala ou de Honduras. Onde está a relação entre custos e benefícios? Porque no Brasil o Estado mostra-se sistematicamente incapaz de atender demandas populares básicas, como educação, saúde, saneamento ou segurança, apesar de reter parte significativa da riqueza nacional (algo em torno de 35% do PIB)?
Com efeito, no Brasil, uma pequena elite se locupleta com recursos públicos extraídos de uma população já bastante empobrecida, desviando, assim, para os próprios bolsos, o que deveria ser convertido em capacidade governamental de prover bens públicos com eficiência. Apenas como um exemplo chocante nesse sentido, que poderia se estender a setores empresariais brindados com isenções tributárias ou vários outros casos semelhantes, recentemente, em Minas Gerais, um Procurador de Justiça do Ministério Público teve suas falas gravadas e divulgadas durante uma reunião. Na ocasião, o tal Procurador perguntava se haveria meios de oferecer vantagens adicionais à sua categoria, dado que os Procuradores estavam na iminência de receber apenas o “salário verdadeiro”, conforme a expressão usada por ele. O Procurador buscava simplesmente meios “criativos”, segundo palavras dele próprio, de obter uma espécie de salário falso, isto é, auxílios ou adicionais para além dos que já são oferecidos, que incluem acesso à carro oficial, duas férias anuais, auxílio funeral e auxílio moradia, para não mencionar o “salário verdadeiro” propriamente, que é cerca de 24 mil reais.
“Como é que o cara vai viver com 24 mil reais”, perguntou-se o Procurador, mais ou menos indignado. “Eu infelizmente não tenho origem humilde”, ele acrescentou. “Eu não sou acostumado com tanta limitação”, admite em seguida, antes de fazer outra confissão. “Eu estou deixando de gastar 20 mil de cartão de crédito e estou passando a gastar 8 para poder viver com os meus 24 mil reais. Agora, eu e vários outros [Procuradores] já estamos vivendo à base de comprimidos, à base de antidepressivos”. Depois dessa mostra de profunda alienação social, o Procurador então concluiu sua reflexão com uma pergunta retórica pouca sincera: “será que eu estou pedindo muito para o cargo que eu ocupo”? Ouçam aqui o áudio dessa pérola.
Em Minas Gerais, o salário do qual o Procurador se queixava, classificado por ele mesmo como uma miséria, ou melhor, “um miserê”, seria suficiente para pagar o salário de 6 soldados da polícia militar ou 14 professores! A renda média dos brasileiros é de cerca de 1.065 reais, quase 23 vezes menos do que o “salário verdadeiro” de um Procurador – deixando de lado o salário falso. Se 24 mil parece uma miséria ao Procurador, o que dizer de 1.065? Até mesmo o diretor do Sindicato dos Servidores da Justiça de Minas Gerais, obviamente comprometido em tentar garantir vantagens e benefícios aos trabalhadores que compõem esta associação, viu-se obrigado a classificar como “um insulto” às declarações do Procurador.
Ainda que o conjunto da população possa não ter o entendimento profundo a respeito dos mecanismos por trás desses expedientes, intuitivamente nota-se os abusos. Tudo isso vai dando fundamento à insatisfação ou mesmo à revolta que motiva parte daquela turba bolsonarista, ao mesmo tempo em que manifestações contra o governo Bolsonaro que pretendiam se contrapor a esse apoio não encontram a mesma adesão, nem entre grupos de direita, nem entre grupos de esquerda. Embora a grande maioria da população não se identifique com a brutalidade de Bolsonaro e alguns de seus seguidores, também não se mobiliza contra o governo. Porque?
De um modo equivocado, a falange bolsonarista assim mesmo vocaliza insatisfações que estão no coração de amplos setores da população. Quem, afinal, estará disposto a protestar em defesa do STF, opondo-se aos que o criticam e demonstrando simpatia por uma instituição tão frequentemente incoerente? Quem estará disposto também a participar de manifestações em favor do Congresso Nacional, tão habitualmente retratado como um covil de ladrões a viver na opulência e de costas para o país? Por que razão os cidadãos mobilizar-se-iam em defesa da democracia, dada a relativa incapacidade desse regime de fato beneficar o conjunto da população - não obstante os tremendos progressos registrados nas últimas décadas? Bem entendido, não se trata aqui de concordar com tais percepções, mas sim de registrar uma dissonância entre expectativas e realizações que efetivamente existe em amplos setores. E de fato, nossa democracia prometeu e segue prometendo mais do que tem sido capaz de crumprir. O fato de ter cumprido muito não muda isso.
Não bastasse, até agora, nenhum grupo político expressivo foi capaz de apresentar uma agenda de futuro, anunciando claramente um conjunto de medidas potencialmente capazes de mitigar os problemas que corroem o país e assim galvanizar uma ampla coalização em favor desses objetivos. Ser contrário ao governo Bolsonaro é mais ou menos fácil. Difícil é ser a favor do que deveria vir depois. É isso, porém, precisamente o que nos falta: uma agenda positiva para o aprimoramento do modo de funcionamento político do Brasil. Precariamente e de modo equivocado, os bolsonaristas têm a sua agenda.
Antes de tudo, é preciso admitir que existem problemas no Brasil e eles não dizem respeito ao Lula, a Dilma, ao Temer, ao Fux, ao Barroso, ao Lira, ao Bolsonaro ou a quem quer que seja. Esse é o modo bolsonarista de raciocinar. Para superar os nossos problemas, contudo, precisaremos de reflexões mais sofisticadas. O problema é estrutural e não se resolve com a mera substituição de indivíduos específicos. Retirar Bolsonaro da Presidência da República pode ser uma condição necessária para o início da superação desses problemas, mas claramente não é uma condição suficiente. O que mais depois?
As degradações do tecido social, econômico e político brasileiro não começaram hoje e não foram criadas por Bolsonaro, embora ele as agrave. Tudo isso é resultado do fracasso das nossas elites intelectuais em elaborar diagnósticos adequados acerca das causas principais dos nossos problemas maiores, assim como expressa também a incapacidade das nossas elites políticas articularem e depois comunicarem adequadamente para o conjunto da sociedade um programa de reformas factível e que vá ao encontro das expectativas populares. É este precisamente o trabalho dos intelectuais e dos políticos. Para isso a sociedade lhes paga. As elites econômicas, claro, têm também a sua cota de responsabilidade, que não é pequena. Cerca de ¼ de todo o orçamento público brasileiro é consumido com “despesa tributária”, que nada mais é do que a renúncia do poder público em receber impostos daqueles que deveriam pagá-los. Naturalmente, isso diz respeito apenas aos impostos que os ricos pagam ou deveriam pagar, pois os impostos que incidem sobre os pobres são inescapáveis.
Infelizmente, o Brasil não tem tido elites à altura de seus desafios. Parafraseando sábias palavras de Mano Browm, os bolsonaristas da minha família, os que trabalham comigo ou os que me atendem na padaria, no restaurante, no supermercado ou nos aplicativos de entrega não são meus inimigos. O problema não está no povo. O problema está nas elites, que tenta nos dividir, para melhor nos governar.
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