Wecisley Ribeiro do Espírito Santo
Quando, em meio à Avenida 9 de Julio (Buenos Aires-Argentina), mais larga do mundo, acendeu o sinal vermelho, cerca de dez carros emparelharam na primeira fila. A passagem à luz verde deu largada à disputa pela pole position, de vez que o tráfego portenho é um desporto, conforme definido pelo cientista político argentino Guillermo O'Donnell. A meta competitiva foi lograda por um Onix 2013, de motor 1.0, secundado por um Fiat Toro 2021, 2.0, sendo a terceira posição ocupada por uma Mercedes Benz Sprinter. Seguiram se acotovelando, com olhares ameaçadores e buzinas, os demais contendores, nos lugares restantes. A ordenação dos corredores não pôde ser, por conseguinte, atribuída nem à potência dos veículos, nem às suas dimensões, senão às subjetividades que então os pilotavam. Houve, de fato, modelos automobilísticos extraordinariamente velozes que cederam, pacientes, a vez aos mais apressados.
A imagem é pálida, mas ilustra o problema central do Brasil. Todos discutem para solucionar os principais defeitos do sistema político sem se disporem, entretanto, a ceder a vez, ou a palavra, ao interlocutor. Houve um tempo em que cada cabeça abrigava a mais analítica expertise futebolística! A aplicação do habitus de treinador de boteco à ciência política tem um lado virtuoso, mas apenas quando acompanhada da filosofia moral.
Digamos, contudo, para efeito de argumentação que, à semelhança daquele Onix, um de nossos politólogos concidadãos lograsse impor seu plano de reforma do Estado brasileiro. O objetivo declarado não seria a obtenção da equidade social; algo que poderíamos ilustrar metaforicamente, sem excessivo rigor conceitual, por aquela situação de igualdade inicial entre os dez veículos emparelhados frente ao sinal vermelho? De modo semelhante, pode-se imaginar as consequências de um plano de reformas bem montado mediante uma reflexão sobre a abertura do sinal verde. Não são as condições estruturais dos veículos que determinam as posições, mas os atributos dos sujeitos que estão aos volantes. Assim também, não são as instituições do Estado que asseguram a vigência da igualdade, da liberdade e da fraternidade responsáveis por sua gestação, mas os valores éticos e habilidades sociais do conjunto dos cidadãos e da sociedade civil. A pasteurização das diferenças subjetivas pela imposição forçada de um ditador (de direita ou de esquerda) é tão efêmera quanto o emparelhamento de veículos, antes da partida.
O verdadeiro problema do Brasil reside no fato de termos cerca de duzentos milhões de reformadores políticos, dos quais uma parcela expressiva não apresenta motivações equivalentes no terreno da reforma ética pessoal. A direita representa as classes que historicamente oprimem o povo por meio do monopólio do capital econômico. Por isso mesmo, seus militantes tendem ao estabelecimento de relações pessoalizadas e cordiais. Porquanto é mais fácil dominar economicamente mediante a dependência paternalista que se produz com a dívida que decorre da dádiva, conforme a formulação de Pierre Bourdieu. A esquerda argumenta defender a justiça social, sob a pretensão ao monopólio do capital cultural com o qual submete (ou antes acredita submeter) as inteligências mais humildes. Nesta hipocrisia reside a causa de todos os erros de seus militantes – que acreditam poder tratar o povo como um conjunto de autômatos e banir os dissidentes com a imposição do terror jacobino, supondo com isso perenizar aquele episódico emparelhamento de automóveis.
E, no entanto, a renovação social brasileira germina nas argutas inteligências humildes do povo. As cátedras universitárias e os camarotes VIP terão de seguir, cedo ou tarde, a vanguarda que trabalha, silenciosa, atrás das banquinhas dos camelódromos e a locomotiva histórica que traciona as carrocinhas de ambulantes. A vigência êmica, largamente registrada pela etnografia brasilianista, de uma preferência estrutural pelo trabalho por conta própria liga, por vínculos robustos de reciprocidade, vizinhanças, comunidades, bairros, distritos e municípios, de um lado, e famílias, grupos de trabalhadores nômades, sacoleiros, circuitos interestaduais e transnacionais de trocas de bens, serviços e afetos, de outro. Contra a sociologia espontânea desta vasta base social a sociologia crítica dos intelectuais de esquerda nada pode. Estes enxergam exploração capitalista e precarização neoliberal do trabalho, onde há tradição popular de longa duração, resistência ao escravismo patronal e autodeterminação das classes trabalhadoras. Entre o sadismo do empresariado de direita e a prepotência dos discursos de esquerda, os chamados pobres optam pela chamada informalidade. Sob a doxa míope da “individualização” ou da “uberização” floresce exuberante rede horizontal de desenvolvimento familiar, comunitário e vicinal.
A Antropologia econômica reconhece na redistribuição centralizada (característica do que Marx denomina modo de produção asiático e também do socialismo), na troca de mercado e na reciprocidade das sociedades sem Estado três princípios integradores econômicos distintos. Desde Karl Polanyi também admite-se que eles podem coexistir. Para além da coexistência, contudo, há princípios predominantes e subordinados. No setor formal da economia, dominado pelo grande capital, a troca de mercado subordina a reciprocidade – ao ponto de quase levá-la a óbito, como reconhece acertadamente a sociologia crítica do trabalho. Nos circuitos econômicos populares, ao contrário, a troca de mercado não representa senão uma fina camada de verniz sobre densos circuitos de reciprocidade.
O leitor amigo de esquerda poderá evocar em defesa própria seus métodos participativos de organização social, sua maiêutica aprendida com Sócrates e Paulo Freire, seus esforços de autoconstrução como intelectual orgânico, o acatamento ao chamado de Mano Brown para um retorno à base; em suma, tentativas mais ou menos sinceras de ingresso nos circuitos populares de reciprocidade. Tais esforços são amiúde infrutíferos por não reconhecerem a distinção entre reciprocidade simétrica e assimétrica. A última preserva o equívoco pressuposto de distinções hierárquicas entre as inteligências e, portanto, pretensões de domínio das vontades alheias – o que é inexequível. A reciprocidade genuína só é tecida na simetria. E a tradição crítica da esquerda embota qualquer desejo sincero à sociabilidade simétrica com as inteligências humildes.
O pensamento humilde está para a autocrítica e o respeito às opiniões alheias como o pensamento crítico está para a auto complacência e a maledicência da alteridade. O exemplo do primeiro transforma subjetividades irmanadas pela reciprocidade simétrica, ao passo que os automatismos do segundo constitui o fermento do fascismo e, em nosso caso, do bolsonarismo. A insatisfação acéfala com as instituições escamoteia as anomalias éticas da sociedade civil e seu corolário institucional – a eleição de representantes políticos à sua própria imagem e semelhança. O pensamento crítico tem um vício imanente. A saber, seu fundamento dialético conflitivo. Aqui a síntese decorre da vitória competitiva da antítese sobre a tese, ou inversamente.
Uma dialética cooperativa, em que tese e antítese se fertilizam e aprendem reciprocamente para gestar uma síntese mais rica que cada uma das duas asserções isoladas é, entretanto, possível. E é este mesmo o fruto do pensamento humilde que circula nos circuitos da economia popular. A própria cognição humana se desenvolve com a dialética cooperativa, ao passo que se embota com a competitiva. O pensamento dicotômico é sempre míope para as virtudes da oposição. A busca das verdades profundas que subjazem aos equívocos dos adversários – do que o texto de Cleber Dias, inspirador da presente continuação, ilustra magistralmente – expande os limites dos próprios horizontes.
Os paradigmas materialistas da política e da economia em vão improvisarão plataformas reformistas ou revolucionárias à guisa de efêmero emparelhamento social. Mas sem o necessário lastro ético das subjetividades nada disso resistirá ao sinal verde da democracia. Argumentam estes engenheiros sociais que a aposta na educação dos seres é mais utópica que a difícil transformação das instituições. Mas o êxito das instituições capitalistas da Coréia do Sul ou das instituições comunistas da China não data das decisões políticas dos reformadores de superfície de décadas atrás, senão da sementeira multimilenária de Confúcio e Lao Tsé.
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