Cleber Dias
Na UFMG, onde trabalho como professor, além das atribuições habituais, coordeno ainda um grupo de pesquisa. Como quase todo grupo, esse também utiliza o Whatzapp para a comunicação. É mais um nefasto grupo do Whatzapp.
Muito recentemente, um dos pesquisadores desse grupo de pesquisa postou uma foto antiga nesse grupo do WhatsApp. A foto era datada dos anos 1970, onde apareciam dois militares fardados. O comentário que acompanhou a foto, a título de legenda, dizia que os militares eram familiares do pesquisador que a compartilhara pelo WhatsApp, depois de tê-la recebido, “coincidentemente”, ele enfatizou, no dia 31 de março.
Outro pesquisador logo manifestou discordância a respeito da pertinência da postagem e do conteúdo, pelas alusões comemorativas ao golpe civil-militar de 1964.
Nesse meio tempo, outros três ou quatro pesquisadores abandonaram o grupo do Whatzapp. Embora não tenham exposto os motivos, parece que foi em repúdio à postagem da foto.
Depois disso, o autor da postagem inicial prestou alguns esclarecimentos, pediu desculpas e também saiu do grupo.
Nenhum desses dissidentes deixou claro se estavam apenas saindo do grupo do Whatzapp ou se o gesto significava também um afastamento das atividades do grupo de pesquisa. Em todo caso, aparentemente, todos eles pareciam supor que seriam mais felizes sem a incomoda obrigação de ter de lidar com ideias, valores e visões de mundo divergentes. Ao que parece, preferem as bolhas, não obstante suas naturezas empobrecidas, dado que confinadas apenas aos que pensam semelhante.
Em tempos normais, seria um acontecimento banal, onde alguém diz ou faz qualquer coisa inadequada e outros lhe chamam atenção. Eventualmente, um debate se estabeleceria ao redor da coisa dita ou feita, até que pedidos de desculpa seriam ditos ou as pessoas simplesmente cansariam do assunto e voltariam aos seus afazeres. Isso se vivêssemos em tempos normais. Não vivemos tempos normais, todavia.
Nos dias que correm, uma postagem em um grupo de Whatzapp tem potencial de se tornar uma espécie de incidente diplomático. O episódio nos diz ao menos duas coisas relevantes sobre o atual ambiente político em que vivemos, mas também sobre os efeitos desse ambiente sobre as atividades universitárias.
Todo ambiente democrático é marcado pela polarização. Também no Brasil, desde a redemocratização, nosso ambiente político esteve fortemente polarizado. Nesse caso, PT e PSDB eram os polos que protagonizavam essa cisão. Agora, contudo, além do PSDB já não desempenhar o mesmo papel de outrora, ocupado por Bolsonaro e seus apoiadores, outra mudança importante teve lugar.
Antes, por mais acirrada que fosse, a polarização conseguia ainda preservar a capacidade da convivência pacífica, por mais difícil que fosse. Já não é mais esse o caso, entretanto. Apoiadores do Bolsonaro dizem abertamente que não têm paciência ou disposição de conversar ou debater ideias conflitantes com simpatizantes do PT ou com eleitores de partidos de esquerda, vistos como comunistas empenhados em sabotar os interesses nacionais do Brasil, que eles julgam representar melhor do que todos os outros. De outro lado, simpatizantes do PT ou eleitores de partidos de esquerda, dizem também que não conversam com apoiadores de Bolsonaro, vistos como ignorantes e fascistas. Nesse caso, apenas simpatizantes do PT ou eleitores de partidos da esquerda teriam o monopólio da razão, da bondade e da virtude. Todo o resto é barbárie e maldade.
Mais do que apenas intolerantes, ambos os grupos compartilham também orgulho na ostentação da intolerância. Ambos os lados desse conflito se orgulham mesmo de romper relações com amigos, familiares e colegas de trabalho pelo simples fato de pensarem diferente, como se a capacidade de conviver com a diversidade e a pluralidade de opiniões fosse uma fraqueza moral, ou como se gestos públicos de intolerância fossem virtudes.
Obviamente, tudo isso reverbera nos ambientes de trabalho, incluindo as universidades, que não são nada mais do que um lugar de trabalho pedagógico, acadêmico e científico. Diante da radicalidade do fundamentalismo dogmático que preside boa parte das opiniões políticas atualmente, incluindo a de estudantes, professores e pesquisadores, que quase nunca se mostram mais sábios, a política é a raison d'être de toda a existência. De acordo com essas visões, bastante distorcidas, afinal, tudo existe pela política e para a política. Nada mais importa.
Se um acadêmico talentoso e dedicado exibe opiniões políticas tidas por erradas por essas rígidas réguas da moral fundamentalista, ele deve então ser preterido; os laços de convivência devem ser rompidos e ele deve finalmente ser condenado ao ostracismo, dado que não soaria bem reivindicar enviá-lo para a ponta da praia ou para o gulag na Sibéria.
É como se uma criança na escola, ao ter que escolher quem fará parte do seu time de futebol, escolhesse apenas os que pensam como ela, com quem tem afinidades e laços de lealdade, deixando inteiramente de lado quaisquer considerações de natureza esportiva. As crianças, porém, geralmente não são tão estúpidas.
Com efeito, falta profissionalismo aos pesquisadores. Dificilmente um trabalhador que leve o seu próprio trabalho a sério pedirá demissão do cargo que ocupa porque descobre que um de seus colegas têm opiniões diferentes das suas. Esta seria apenas uma postura infantil, travestida de politicamente engajada.
Toda vez que as classes intelectuais abandonam o rigor acadêmico como critério fundamental de organização de seus trabalhos, de alguma forma estão abandonando também o próprio horizonte de busca da verdade e de ampliação das fronteiras do conhecimento que deve orientar a atividade acadêmica. Dentre muitas outras razões, essa é uma das causas da perda de credibilidade da ciência e das universidades que vemos nos dias de hoje.
Intuitivamente, muitas pessoas notam que a opinião de cientistas não está levando em conta apenas critérios propriamente científicos, se não também preocupações de ordem ideológica ou política. Se cientistas voluntariamente se reduzem ao papel de ideólogos ou militantes políticos, nada mais natural que sejam vistos e tratados precisamente nesses termos. Naturalmente, o esvaziamento simbólico da ciência e das universidades é nocivo para toda a sociedade. Nesse sentido, pesquisadores prestam um desserviço à política e também à ciência quando submetem suas atuações acadêmicas a critérios políticos.
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