Cleber Dias
Políticas públicas seriam melhores se fossem sempre formuladas por meio de plebiscitos, referendos ou consultas populares? Em teoria, expedientes desse tipo garantiriam maior capacidade de identificação e de atendimento de necessidades da população, aprimorando, portanto, a eficácia das políticas. Na prática, contudo, há sempre uma série de complicações.
Nick Srnicek e Alex Williams (no livro Inventing the future: postcapitalism and a world without work), chamaram de “horizontalismo” a desconfiança frequente em círculos de ativistas da esquerda diante de estruturas hierárquicas e verticais. Como alternativa, segue o argumento dos autores, essa desconfiança anima uma confiança exagerada e injustificável, segundo o ponto de vista deles, com relação a mecanismos de participação direta e sem a intermediação de representantes. Entre outras coisas, eles destacam dificuldades práticas para a organização desses procedimentos, especialmente se frequentes e rotineiros, além da eventual indisposição e falta de interesse.
Além disso, acrescento agora por minha conta, em razão de características da própria cognição humana, a dinâmica coletiva de tomada de decisão, a depender da maneira como é organizada, pode enviesar algumas opiniões e preferências, em prejuízo de outras, podendo tornar decisões elaboradas dessa forma distorcidas e pouco representativas do conjunto. Psicólogos chamam o fenômeno de “efeito halo”.
Há ainda a questão da racionalidade dessas escolhas. Diferente do que supõe o arcabouço teórico predominante, que sublinha a racionalidade das escolhas dos indivíduos, decisões nem sempre se orientam racional e conscientemente. Críticas a essa ênfase supostamente sempre racional das escolhas dos indivíduos tratam do universo econômico de consumidores no mercado, conforme as teses de Daniel Kahneman em Rápido e Devagar ou de Richard Thaler em Misbehaving, mas também das decisões e preferências dos cidadãos na política, conforme teses de Bryan Caplan em The Myth of the Rational Voter.
Em todos os casos, seja no mercado ou na política, críticas podem e às vezes devem ser formuladas às decisões e preferências dos indivíduos, donde a transferência da autoridade decisória para os cidadãos poderia ser virtualmente tão ruim ou até pior do que aquelas realizadas por representantes ou instâncias de intermediação.
A depender do assunto e do contexto em que consultas para tomadas de decisão sejam empreendidas, os resultados podem ser contraditórios ou até mesmo ilógicos. Cidadãos podem reivindicar mais e melhores serviços públicos, por um lado, ao mesmo tempo em que exigem menos impostos, por outro. São demandas conflitantes e difíceis de conciliar, se é que podem ser conciliadas de algum modo.
Em 2005, um referendo sobre a proibição do comércio de armas no Brasil obteve 63% dos votos contrários à medida, não obstante as abundantes evidências que estabelecem que o armamento da população não apenas é incapaz de reduzir índices de criminalidade, como frequentemente está associado com a sua elevação.
Mais recentemente, diversas pesquisas têm apontado a firme e persistente opinião da grande maioria dos brasileiros contra o aborto, no que tem consequências negativas para a saúde das mulheres – elas próprias em grande medida contrárias à medida.
Conferências Nacionais do Esporte realizadas durante os governos do PT, que reuniram diversos e amplos setores para discussões sobre políticas públicas do setor, dentro daquele espírito participativo, indicaram que os recursos destinados aos esportes deveriam elevar-se até o patamar de 1% do orçamento, o que representaria, caso a medida tivesse sido efetivada, quase dobrar as suas receitas, que equivaleriam então a quase 20% do orçamento educacional. Faz sentido? Qual o fundamento desse número? Porque 1% e não 2, 6 ou 10?
Ao decidirem em favor da ampliação dos gastos públicos com esportes os envolvidos sabem ou têm como saber que cerca de 70% de todos os recursos destinados a essa área nos últimos anos foram direcionados ao chamado "esporte de alto rendimento", seja na forma de construção de instalações fora do alcance da maioria, seja na forma de financiamento de treinamento e custeio de participação em competições internacionais? Prefeririam isso ou a construção de praças, a realização de eventos, o apoio a atividades esportivas nas escolas ou alguma outra coisa? Os cidadãos, afinal, têm tempo, vontade e condições de inteirar-se desses detalhes, não apenas com relação aos esportes, mas também com relação a todo o resto?
Comments