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Presente e futuro da Formação em Educação Física

Foto do escritor: Cleber DiasCleber Dias

Em 1987 foi aprovada uma resolução que previa a possibilidade de que instituições de ensino superior ofertassem cursos de bacharelado em educação física. Até então, a formação superior em educação física dava-se fundamentalmente por meio de cursos de “licenciatura plena”. A principal justificativa para a mudança era a expansão do mercado de trabalho e consumo de atividades físicas e esportivas de lazer. Segundo se argumentava à época, essas mudanças justificariam a oferta de uma formação especialmente voltada para esse campo de atuação.


Daí em diante, a expansão tanto desse mercado de trabalho e consumo, quanto da oferta de cursos de bacharelado em educação física, só fizeram aumentar.


No ano 2000, apenas 30% das matrículas em cursos de graduação em educação física estavam no bacharelado. Em 2020, contudo, esse percentual representava já 70% do total de matrículas, em uma expansão nada menos que espetacular, dentro de um período de tempo relativamente curto.


Naturalmente, os cursos de licenciatura viveram o processo inverso. De 70% das matrículas que tinham no ano 2000, contavam apenas 30% dessas matrículas em 2020. Trata-se de uma transformação histórica sem precedentes.



O presente e muito possivelmente o futuro da educação física reside nos cursos de bacharelado. Para o bem ou para o mal, os cursos de licenciatura representam agora apenas uma franja marginal dos cursos de graduação dessa área. Não fosse pela oferta de cursos de licenciatura à distância, os cursos de licenciatura estariam ainda mais reduzidos, representando, talvez, apenas 10 ou 15% do total de matrículas da educação física.


A transformação na estrutura dos cursos de graduação em educação física claramente acompanha mudanças que o próprio mercado de trabalho dessa área vem sofrendo ao longo desse período.


O número de academias de ginástica ou musculação quase dobrou entre os anos 2000 e 2020. Nesse mesmo período, porém, o número de escolas do ensino básico diminuiu 17%, em tendência que deve se manter ou talvez se acelerar com a transição demográfica que caracteriza a população brasileira atual. Ao invés de um país de crianças e jovens, estamos, cada vez mais, nos tornando um país de idosos. Essas mudanças exigem instituições e serviços diferentes, inclusive no que diz respeito à educação física.


Não bastasse a abrupta transição em direção ao bacharelado, a natureza do consumo e da oferta de serviços neste âmbito de atuação também vem mudando muito rapidamente.


Uma pesquisa recente apontou que os valores gastos na aquisição de serviços fitness digitais representam 70% do total gasto com serviços fitness presenciais. O que é espantoso é que o percentual de gastos com serviços fitness digitais era praticamente zero até o ano 2020.


Em apenas três anos, portanto, um mercado que bem dizer inexistia há pouquíssimo tempo atrás, quase atinge as mesmas proporções de mercados mais consolidados e tradicionais. Esses novos mercados exigem conhecimentos e habilidades significativamente diferentes daqueles mais tradicionais. “Algoritmos”, “linguagem Pythom”, “gestão de tráfego”, “venda no perpétuo ou no lançamento” são alguns dos muitos jargões que pontilham o cotidiano dos trabalhadores desses novos mercados.


Professores de educação física agora ofertam seus serviços de maneira remota e digital para centenas e às vezes dezenas de milhares de pessoas. Os mais privilegiados chegam a faturar dezenas de milhares de reais todos os meses, para não mencionar um seletíssimo grupo que consegue faturar até centenas de milhares. Coisas desse tipo eram inimagináveis há pouquiíssimo tempo atrás.


Em resumo, o mercado de trabalho com que se deparam os estudantes que estão se formando agora é muitíssimo diferente daquele que eu mesmo encontrei quando me formei nos idos do ano de 2003 (há exatamente 20 anos atrás). Nada disso existia naquela época e seria difícil até mesmo imaginar que coisas assim aconteceriam dali há alguns anos. As faculdades de educação física, contudo, insistem em preservar as mesmas velhas estruturas curriculares de muitas décadas atrás, apesar de todas as notáveis e aceleradas mudanças que se processam.


Como vestígios de uma época que já quase não existe mais, encontramos nos currículos dos cursos de bacharelado em educação física disciplinas como “voleibol”, “handebol”, "basquete" ou “jogos e brincadeiras”, cujos conhecimentos são relevantes por si mesmos, mas são em grande medida inúteis diante das demandas atuais dos mercados de trabalho que concentram os maiores números de oportunidade dessa área. Na prática, o mercado de trabalho atualmente predominante na educação física, isto é, o mercado de trabalho dos bacharéis, é quase sinônimo de fitness, não de esportes, embora as faculdades, apegadas ainda aos paradgimas do século XX, mantenham sua ênfase esportivizante.


Todos os que tentam se aventurar a explorar essas novas oportunidades, fazem isso por conta própria, sem apoio de nenhum tipo de seus professores, muitas vezes incapazes de sequer entenderem do que se trata tudo isso. Nas faculdades de educação física brasileira, o novo já nasce velho.


A rigor, as faculdades não oferecem de fato conhecimentos compatíveis com o mundo do trabalho que vigora atualmente na educação física. Os currículos dos cursos de graduação em educação física seriam excelentes para a década de 1980, mas são totalmente inadequados para o século XXI.


As acaloradas discussões sobre mudanças dos currículos que tanto consomem os docentes universitários costumam se limitar a debater coisas como se a disciplina de sociologia do esporte deveria adotar a perspectiva de Pierre Bourdieu ou de Norbert Elias. Ou então discutir fervorosamente se as disciplinas de Humanidades deveriam se concentrar em uma fase específica do curso, ao invés de se distribuírem ao longo do curso inteiro. Tudo bastante irrelevante, portanto.


Em entrevistas que tenho realizado há cerca de dois anos com trabalhadores da educação física, ouço coisas que me deixam cabisbaixo e perplexo. “Tudo o que a faculdade te oferece é um diploma”, me disse certa vez um desses trabalhadores com quem conversei. “Tudo o que você precisa aprender para trabalhar na área [da educação física], você precisa buscar fora das faculdades”, me disse outro. “Os professores só ensinam o que eles querem, o que eles sabem e o que é mais conveniente para eles, não o que você precisa aprender [para trabalhar]”, estocou ainda outro, com bastante ênfase.


É atordoante lidar com percepções desse tipo.


Segundo o ponto de vista desses trabalhadores, 3.200 horas de aulas, ministradas ao longo de 4 anos, não são suficientes para adquirir conhecimentos básicos e desenvolver habilidades mínimas necessárias para uma atuação profissional na área da educação física. Diante dessas percepções, é forçoso perguntar, tal como se fazem os próprios estudantes e trabalhadores: se essas aulas todas não servem para atuar profissionalmente e lutar por um espaço em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo, servem para quê então?


Os desafios que se impõem à formação em educação física certamente são muitos e profundos. Além da mera digitalização, que parece uma tendência consolidada já, há ainda vários desafios decorrentes de outros aspectos, como àqueles relativos à natureza autônoma da prestação de serviços nessa área ou dos riscos de desemprego estrutural com a crescente automação da prescrição de exercícios através do uso de inteligência artificial, entre muitos outros aspectos. Resta saber se as faculdades estarão preparadas para oferecer respostas à altura.

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