Cleber Dias
Há cerca de uma semana, famílias puseram coroas de flores fúnebres nas portas de escolas particulares de Belo Horizonte. As coroas traziam faixas que diziam, “luto pela educação”. Houve também cartazes com dizeres semelhantes, além de pequenos protestos.
Como habitual, os tribunais da internet não tardaram em emitir seus incisivos vereditos. Alguns desses pais e mães, conforme disseram comentários sobre as notícias nas redes sociais, seriam médicas e enfermeiros, o que do ponto de vista de quem comentava, parecia tornar a manifestação ainda mais incompreenssível, se não indesejável mesmo.
Tomando o conjunto dos comentários, eu os dividiria em cinco tipos. Primeiro, os xingamentos: “cínicos”, “nojentos”, “repugnantes”, “maldosos”, “gananciosos”, “babacas”, “doentes”, “burros”, “incultos”, “ignorantes”, “sem caráter” e como não poderia deixar de ser, “fascistas”, foram alguns dos que pude anotar, embora houvesse outros.
Além de xingar, os comentários estabeleceram uma associação entre os protestos e preferências eleitorais. É o segundo tipo de comentário, sempre em tom ofensivo. Segundo registraram tais comentários, os que desejam a reabertura das escolas são “bolsonaristas” e “contra o PT”, além de adeptos do “movimento escola sem partido” e entusiastas do “homeschooling”.
Os comentários também estabeleceram relações entre aqueles protestos e outros valores mais gerais. É o terceiro tipo de comentário. Nesse caso, quem deseja a reabertura das escolas seria “materialista” e estaria tão somente expressando suas preocupações mais profundas, quais sejam, o lucro e o dinheiro. Segundo essa “leitura”, digamos assim, essas famílias não estariam de fato preocupadas com a educação das crianças, mas apenas com o restabelecimento de suas condições de trabalhar em busca do vil metal.
O quarto tipo de comentário é de natureza afetiva. Para alguns, aqueles protestos evidenciavam a indisponibilidade emocional dos pais e mães de conviverem com os próprios filhos. Esse convívio, segundo as deduções da turba virtual, teria se transformado em um “fardo”, cujo peso os pais e mães já não suportariam.
Finalmente, houve ainda um quinto tipo de comentário, que dizia respeito a tecer prognósticos sobre as consequências de uma eventual reabertura das escolas. Segundo esses comentários, o resultado seria um só: a morte dos filhos, dos pais, dos avós e dos professores. Tão macabramente quanto o próprio protesto que criticavam, alguns ainda sugeriram, com amarga ironia, que as coroas de flores deveriam ser guardadas para os velórios que inescapavelmente aconteceriam. “Matem seus filhos, monstros!”, escreveu um. “Vidas serão perdidas”, decretou outro. “Assassinos!”, escreveu um terceiro.
De maneira mais grave, alguns enfatizaram que as mutações genéticas do coronavírus teriam sido resultado da reabertura de escolas na Europa.
Todas essas críticas procuram, antes de tudo, desclassificar os que têm opiniões contrárias. Desse modo, reivindica-se superioridade moral, não pela exibição de virtudes, mas através do rebaixamento ético dos outros. É um recurso ardiloso que evita ou impede mesmo que se leve em consideração as diversas razões e pontos de vista que estão em jogo nessa trama, que é bastante complexa e cheia de nuances.
Apesar de acusarem os outros de ignorantes, não se vê sofisticação intelectual alguma nessas críticas, aliás, bastante violentas. Não se pode saber, por exemplo, como é que puderam chegar a tantas conclusões a respeito das preferências ideológicas ou eleitorais dos pais que depositaram coroas de flores nas portas das escolas. Também não se sabe como é que esses críticos puderam escrutinar tão profundamente a alma dos pais e mães que tomaram a iniciativa daqueles protestos, a ponto de tirarem conclusões a respeito de suas motivações mais íntimas. No mesmo sentido, as relações entre a abertura de escolas e as velocidades de contágio, como quase tudo na história dessa pandemia, também é suscetível a versões conflitantes e controversas científicas de toda ordem, embora tais contradições e incertezas não estejam no horizonte dos juízes da internet. Na voz desses críticos, tudo se resume a brutalidade.
No limite, estes que se julgam moralmente superiores não se mostram melhores do que aqueles a quem criticam. Exigem empatia, mas não demonstram nenhuma.
“Mesmo se eu fosse milionária”, assim comentou uma jovem nas redes sociais, “jamais colocaria meus filhos numa escola dessas. Imagina os amiguinhos, mini-bolsominions...”. Outra disse ainda odiar os ricos, invertendo, na mesma moeda, o ódio de classes que marca a sociedade brasileira. É a política do olho por olho, em que todos ficam cegos ao final.
O ideal revelado aqui é o de um mundo dividido, onde os que se imaginam bons estariam de um lado, enquanto os que são retratados como maus estariam de outro. É um mundo maniqueísta, como se vê, onde nem as crianças estão a salvo. Filhos de bolsonaristas seriam, por princípio, tão bolsonaristas quanto os pais. O muro de Trump não faria melhor.
Como toda mentalidade intolerante e cheia de si, esta também produz e reforça visões empobrecidas do mundo, tão indisponíveis estão ao confronto de opiniões e ao convívio pacífico com a diversidade. Curiosamente, muitos do que pensam assim, reivindicam, apenas retoricamente e de forma superficial, a aceitação de certas diferenças, como as de gênero, por exemplo, embora não tolerem as diferenças de opinião política. Trata-se de um ideal de tolerância bastante limitado e circunscrito aos próprios interesses.
Incapazes de se colocarem no lugar do outro, supõem, erradamente, que “ricos” não se preocupam de fato com a educação dos filhos e que tudo não passa de um subterfúgio para evitar o convívio familiar com as crianças. Erradamente também, supõem ainda que “ricos” não trabalham e que poderiam, se quisessem, estar em casa brincando com os filhos. Isto deve ser verdade para alguns, mas apenas para uns poucos.
Nesse mundo imaginário, além disso, todas as necessidades materiais e imateriais – que na nossa época são muitas – podem ser satisfeitas sem trabalho: a casa, o carro, o conforto, a cultura, a internet, a boa educação, as viagens e todos os outros prazeres mundanos da vida. Antes de criticar esses desejos como fúteis, deveríamos nos perguntar quantos de nós de fato não deseja desfrutar desses luxos e até que ponto estamos dispostos a renuncia-los. Os que estiverem de acordo com essa crítica, poderiam, talvez, começar dando o exemplo, desligando os modems da internet.
A maioria das famílias com filhos matriculados em escolas particulares, contudo, não é propriamente “rica”, se não uma classe média laboriosa, que dedica boa parte da vida a trabalhar e trabalhar, a fim de satisfazer esses e outros desejos. Não digo que seja um ideal de vida nobre, mas nunca achei ter o direito de prescrever como cada um deve viver a sua vida. Os críticos da internet parecem ter essa ambição. Julgam saber o que é melhor para os outros, mais do que as próprias pessoas diretamente interessadas no assunto. Convenhamos, é uma postura extraordinariamente petulante.
Há ainda uma ironia histórica aqui, no que é o aspecto mais importante desse episódio. De um modo ou de outro, os ricos ou mesmo os grupos das classes médias encontram suas alternativas: contratam professores particulares ou enviam seus filhos para as escolas particulares, convertidas agora em “casas de brincar”. Nada disso está disponível para as famílias pobres, sobre o quê a turba virtual silencia.
Os que criticam o protesto acaso não vão aos supermercados, não compram comida em restaurantes, não usam ônibus, não abastecem veículos nos postos de gasolina? Médicas e enfermeiros acaso não têm filhos? Onde essa gente pensa que ficam os filhos e filhas desses trabalhadores e trabalhadoras?
Crianças, meus caros, não têm botão de liga e desliga. É preciso que cuidem delas, em ambientes tão seguros quanto possível, preferencialmente sob a supervisão de adultos afetuosos. As ruas não oferecem nada disso.
Muitas famílias estão vivendo um drama com as escolas fechadas. Sem ter onde deixar os filhos, não podem também abandonar os trabalhos, pois disso dependem para sobreviver. Não me refiro as famílias tidas como “ricas” que organizaram aqueles protestos nas portas das escolas de elite de Belo Horizonte. Refiro-me as famílias de fato pobres que não têm tempo, nem recursos, sequer para protestar. As escolas precisam reabrir, especialmente as públicas. Os detalhes dessa operação devem ser traçados pelas autoridades responsáveis. Mas um esforço nesse sentido precisava ter sido deflagrado desde os meados de 2020. Estamos cerca de um ano atrasados.
Quando se ouvem os argumentos dos pais e mães que organizaram aquele protesto, fica um pouco mais difícil discordar tão veemente das suas motivações. Segundo uma mãe que esteve envolvida com o assunto, conforme reportagem do jornal Estado de Minas, “é um absurdo que ele [o prefeito] tenha liberado até música ao vivo nos bares, mas ainda não tenha uma data para retomar um serviço tão essencial como a escola”. Segundo palavras de outra mãe, conforme mesma reportagem, “queremos que o poder público priorize a educação”.
A eventual fortuna dessas mulheres não muda a pertinência de seus argumentos. A eventual pobreza dos que as criticaram tampouco torna sensatos os argumentos em contrário. A riqueza não necessariamente é uma virtude. Mas a pobreza também não.
Os críticos da internet então são contra a priorização da educação? Ao invés de ponderar mais seriamente sobre as palavras dessas mães, deveríamos apenas aceitar que a educação escolar é o mais supérfluo dos serviços?
Depois de muito enfatizarmos a importância do “lugar de fala”, talvez devêssemos começar a tratar também do “lugar de escuta”. Assim, quem sabe, começássemos a debater as ideias, ao invés de as pessoas que as enunciam.
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