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QUATRO MITOS SOBRE LAZER E CULTURA

Foto do escritor: Cleber DiasCleber Dias

Quatro mitos sobre lazer e cultura que já te contaram e você possivelmente acreditou


Cleber Dias


1. Lazer e cultura geram bem-estar e desenvolvimento


A noção de que o lazer gera bem-estar e desenvolvimento é uma consequência da visão triunfalista e etnocêntrica da modernidade européia. Da mesma forma que a modernização gerada pelo capitalismo industrial costuma ser vista como força inexorável de progresso e melhoramento, o lazer e várias outras práticas associadas a esse contexto (como os esportes ou as artes modernas) são também vistas como algo sempre positivo. No entanto, o lazer ou os diversos modos de ocupação do tempo livre nem sempre geram bem-estar. Práticas violentas ou de muitas formas nocivas também fazem parte deste universo, conforme tanto se empenhou em mostrar o sociólgo Chris Rojek. Prostituição ou uso recreativo de drogas (lícitas ou ilícitas) são talvez os exemplos mais óbvios, para não mencionar outros mais cabeludos. Do mesmo modo, o capitalismo industrial, além dos benefícios que de fato pôde gerar, teve e tem também muitas consequências negativas. Acima de tudo, porém, não é bem o lazer e a cultura que geram desenvolvimento, mas antes o contrário: é o desenvolvimento o que permite a ampliação dos tempos livres e oferece os recursos para o consumo de cultura.


2. Lazeres populares são o produto de carências e falta de oportunidades


Esta bem-intencionada conclusão, que tenta exibir empatia pelos mais pobres, na verdade apenas evidencia incompreensão ou preconceito diante de hábitos populares. Os lazeres populares, embora muitas vezes permeados por carências e faltas de oportunidades, são também as expressões de preferências verdadeiras. O argumento usual de que iniciativas para a ampliação do cardápio de atividades de lazer ou cultura têm por objetivo tão somente apresentar novas possibilidades é apenas um mal disfarçado subterfúgio para acobertar as verdadeiras e no mais das vezes inconscientes intenções de converter a todos às mesmas preferências. Todavia, os hábitos e valores culturais das elites ou das classes médias escolarizadas, como o teatro, a leitura, os museus, a prática de esportes ou mesmo a celebração da diversificação de lazeres, que estão na base da maioria dessas iniciativas, não são de modo algum inevitáveis. Outros hábitos e valores são igualmente legítimos, donde reduzi-los a carências equivale a não reconhecer as suas legitimidades, ao mesmo tempo em que advoga uma postura missionária, prescritiva e autoritária diante das culturas populares. Além do mais, essas expectativas de conversão cultural são totalmente irrealistas. Os humildes seguirão desprezando a cultura dos estratos superiores, tanto quanto os estratos superiores desprezam a cultura dos humildes.


3. O Estado é o principal agente para ampliação das oportunidades de lazer


Como alternativa a essas carências e falta de oportunidades imaginadas, geralmente a ação governamental ou as políticas públicas são apresentadas como recursos privilegiados, no que podemos chamar de fetiche pelo Estado. Tais visões, no entanto, deixam de lado quem determinará o que deve ser ofertado, quais oportunidades devem ser ampliadas, quais critérios poderiam justificar universalmente essas escolhas e quais efeitos de fato tais ofertas desemprenhariam na vida da população, que afinal nunca emitiu procuração a terceiros para escolherem seus lazeres e seus modos de ocupação do tempo livre. Considere-se ainda que há falhas de governo, assim como há falhas de mercado. Veja-se por exemplo a distribuição dos equipamentos destinados a fruição da cultura erudita. Frequentemente mantidos ou subsidiados com recursos públicos sob o pretexto de democratizar o acesso à cultura, espaços como museus ou centros culturais estão invariavelmente concentrados nas regiões, cidades e bairros de maior renda e níveis de escolaridade. Sem surpresa, serão os ricos mais escolarizados que frequentarão esses espaços mais assiduamente. Assim, em última instância, o dinheiro público serve para construir e manter equipamentos urbanos que favoreçam a especulação imobiliária, ao mesmo tempo em que facilitam o lazer dos mais ricos. Enquanto isso, circuitos informais de comercialização de cultura se encarregam de distribuir amplas oportunidades de lazer para as pequenas cidades do interior ou para os bairros pobres das grandes metrópoles. Em outras palavras, ao menos no que diz respeito ao lazer e a cultura, o Estado é um agente que reforça desigualdades, ao passo que os mercados ampliam e democratizam oportunidades de consumo cultural.


4. A comercialização do lazer é negativa e deve ser criticada


O elogio entusiasmado e mal-informado a respeito do papel do Estado no provimento de serviços de lazer é a contrapartida lógica ou ilógica da concepção que enquadra as economias de mercado de modo sempre depreciativo, como um agente inexorável de desigualdades, tal como informado pela velha teoria crítica das indústrias culturais. Todavia, por mais bem financiado e por mais bem orquestrado que fosse, o planejamento do Estado seria sempre incapaz de prover serviços de lazer em quantidades suficientes para atender as insaciáveis demandas da população por diversão. Os gastos privados das famílias com lazer e cultura excedem em dezenas de vezes os gastos públicos com essas rubricas, de modo que seria preciso elevar os orçamentos dessas áreas para além dos patamares atualmente destinados à educação, à saúde ou a previdência, que são os setores com maior dotação orçamentaria, a fim de se tentar minimamente fazer frente a esse volume de investimentos privados. Obviamente, medidas desse tipo são economicamente impossíveis, além de politicamente indesejáveis. Aparentemente, eleitores não estão dispostos a aumentar a carga tributária ou sacrificar serviços públicos tidos como essenciais por eles mesmos, como saúde, educação e assistência aos aposentados, a fim de ampliar recursos para as atividades culturais nos bairros ricos ou aulas de ginástica, balé e futebol nos bairros pobres. A oferta comercial e o consumo privado através de mecanismos de mercado foram, são e serão as formas mais rápidas e eficientes de ampliar e democratizar o acesso ao lazer e a cultura.

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1 commentaire


Caro Irmão Cleber.

Vejo que questões levantadas no texto, sucinto que faz o leitor ler até o final, mas objetivo são nevrálgicas.

Penso que o estado tem uma responsabilidade que não assume no que concerne a oferta de lazer democrático e que atenda a ponta da corda.

As populações menos favorecidas.

Tive a oportunidade de trabalhar/estagiar, na minha graduação pela UERJ, em dois locais críticos naquela oportunidade (anos 80) e até hoje, acredito que continua crucias no sentido de intervenção do poder público sobre o assunto hora em pauta.

As comunidades dos Morros da Mangueira e do Borel.

O estado, naquela época não tinha nenhum projeto que atendesse as necessidades do lazer destas comunidades.

Assim, o tráfico se incumbia de…

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