Cleber Dias
Na falta do futebol, falar mal do Centrão se tornou o esporte nacional. Pesquisa DataFolha recente revelou que 67% dos entrevistados reprovavam negociação de Bolsonaro com congressistas do Centrão. O que a pesquisa não apurou, contudo, foram os motivos para essa reprovação, o que seria deveras importante, afinal, há muitas razões para se aprovar ou rejeitar uma matéria. Reprova-se a negociação em si ou apenas o interlocutor da negociação?
O chamado Centrão é um agrupamento informal de partidos que se articulam para apoiar ou obstruir projetos. Não é um clube que exija carteirinha, nem um condomínio que peça identificação. Ali, tudo gravita ao redor de interesses concretos, além de certo senso de oportunidade. Mesmo assim, há uma espécie de núcleo duro, que ao sabor das circunstâncias vai se combinando com uns e outros partidos. Usualmente, porém, aparecem na lista do Centrão o PP, o PL, o PSD, o PTB, o PSC, o MDB, o DEM, entre outros.
Determinar a dificílima afinidade programática entre um partido trabalhista, um partido liberal e um partido social democrata não é uma questão que venha ao caso na dinâmica interação dessa sopa de letrinhas. Como disse, o Centrão não é um clube que exija carteirinha. O importante ali é a capacidade de ação política, medida através do poder de barganha.
Juntas, essas siglas detêm mais da metade das cadeiras da Câmara dos Deputados, o que significa que nada ali vai adiante sem o apoio do Centrão. Políticos do Centrão sabem disso. Políticos dos Extremões também. Lula resumiu irreparavelmente a situação quando disse que se Jesus voltasse à terra no Brasil, teria que negociar com Judas.
Para obter apoio do Centrão, necessita-se fundamentalmente oferecer o acesso a cargos e verbas, ou seja, partilhar às oportunidades de exercício do poder. Aqui começa a complexidade do jogo político real, para além dos fundamentalismos de princípios, das idealizações abstratas, das palavras de ordem e das frases de efeito.
Um político busca a eleição a fim de tentar interferir no rumo dos acontecimentos, influenciando quais projetos, setores ou regiões receberão mais ou menos recursos. Um político eleito que se abstivesse desse jogo, furtando-se do acesso aos cargos do poder público e dos recursos guardados ali, seria como um centro avante que joga parado, apenas observando os outros disputarem a posse de bola. Um centro avante que se preze, contudo, tem que fugir da marcação, buscar a melhor posição, receber e tocar a bola, às vezes ajudar na defesa, além de tentar o gol por todas as formas: surpreendendo os adversários com a interceptação de um passe, armando um contra-ataque inesperado, chutando, cabeceando, cavando faltas e, se possível, cavando pênaltis.
De certo modo, é isso o que fazem os políticos do Centrão: tentam de todas as formas realizar o objetivo do jogo político, que é a arte de influenciar o modo de governo. No processo, podem cometer infrações: obstruem o jogo quando em vantagem no placar, tocam a bola com as mãos, fazem uma falta mais violenta. Como punição, podem ser substituídos pelo técnico, advertidos oralmente pelo juiz ou receber um cartão vermelho. Seguramente serão vaiados pela torcida adversária. Isso também faz parte do jogo.
Criticar o Centrão é apontar-lhe os defeitos, procurando, implicitamente, diminuir o adversário, a fim de tentar inserir a si mesmo nas grandezas da superioridade moral.
– Vejam, aqueles são os políticos do Centrão, incorrigíveis, como sempre. Que vergonha! Que abjeto. Que nauseante. Quanta ignorância e desfaçatez. Quão diferente de nós eles são...
Com efeito, a crítica ao Centrão reproduz a fantasia de uma elite política corrupta e desonesta, responsável pelas nossas mazelas, diante de uma sociedade civil honesta e virtuosa, incapaz de se erguer diante de aproveitadores tão poderosos. Tudo isso é falso. Os eleitores desses políticos – ou seja, nós – não são melhores do que eles. Os responsáveis pelos nossos problemas não são outros, se não nós mesmos. Isso torna nossos problemas mais difíceis, pois até podemos substituir os políticos da ocasião, mas não a sociedade que os elege.
Se 67% da população desaprova o Centrão, como esses políticos puderam se eleger? Quem afinal elege o Centrão e porque?
Políticos do Centrão, como quaisquer políticos, procuram atender demandas de suas bases eleitorais, a fim de garantir suas reeleições e assim seguir no jogo. Boa parte dessas demandas, portanto, estão materializadas nas práticas dos políticos, que são como que um espelho da nossa sociedade: buscam boquinhas, privilégios e favorecimentos. Somos todos Centrão.
Na medida em que condena mais da metade dos congressistas, a crítica ao Centrão acaba também por criminalizar a política, o único recurso para o aprimoramento de uma sociedade. Criticar a negociação política por si mesma, que é apenas uma forma de partilhar o poder entre os grupos minoritários que não puderam formar maiorias, é como abdicar da própria política. E abdicar da política é renunciar ao sonho de uma sociedade melhor.
O pragmatismo do Centrão não é pior que o dogmatismo dos seus críticos. Em política, ignorância é agir contra seus próprios interesses (tipo Bolsonaro). Nesse sentido, aferrar-se a fundamentalismos dogmatismos, a despeito do contexto e das circunstâncias, não é prova de inteligência política. É apenas uma outra forma de ser ignorante.
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