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TECNOLOGIA ESPORTIVA E ESPORTIVIDADE TECNOLÓGICA

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


Em diversos níveis de entendimento, tendo em vista a perspectiva abrangente que temos tentado sistematizar neste portal, o fenômeno esportivo é protagonista de grandes transformações tecnológicas. Para compreender o processo histórico que justifica esta afirmação, é necessário distinguir o esporte como caso particular da esportividade – entendida como atributo antropológico que se expressa nas múltiplas manifestações da cultura humana. Realizada esta discriminação nos habilitamos a registrar a coexistência de uma tecnologia esportiva e de uma esportividade tecnológica. Vejamos.

O historiador Georges Vigarello descreveu os nexos entre a invenção da ginástica moderna, no século XIX, e a revolução científica em curso na Europa, desde o século XVII. Para forjar métodos de treinamento das capacidades físicas foi necessário, antes de tudo, submetê-las a um escrutínio analítico; decompô-las em suas unidades básicas mediante a criação de instrumentos de medição. O advento do dinamômetro, por exemplo, forneceu uma condição fundamental de possibilidade para o registro comparativo da força e da potência muscular. Técnicas modernas de dissecação de cadáveres permitiram delinear os vetores de contração muscular, origens e inserções dos músculos na estrutura esquelética, bem como suas respectivas alavancas e propriedades biomecânicas. Juntos, estes dois eventos de progresso tecnológico, permitiram o registro comparativo sincrônico de valências corporais – por exemplo, da força média de ingleses, franceses, alemães. Não tardaram as anotações de séries diacrônicas de força, potência, resistência, flexibilidade, equilíbrio, coordenação motora que expressavam quantitativamente a evolução dos primeiros indivíduos (todos homens) submetidos aos métodos ginásticos. Esta a gênese da tecnologia de treinamento desportivo contemporânea.


Mas a tecnologia em sentido genérico é também ela dotada de esportividade. Se recordamos, sob inspiração de Huizinga, o contínuo que vincula guerra e política (compreendida como a competição pacificada entre argumentos elaborados pelos moradores da polis), passando pelos fenômenos intermediários do esporte e das artes, testemunhamos então o fundamento a um só tempo competitivo e cooperativo que ensejou todos os avanços tecnológicos da humanidade. A própria tecnologia bélica forneceu as bases para muitíssimos artefatos aplicados à promoção da saúde – dentre os quais as tecnologias de diagnóstico por imagem. Trata-se menos de elogiar a guerra – condenável sob qualquer critério ético razoável – que de enfatizar o motor científico e tecnológico que se expressa na unidade complementar e contraditória entre competição e cooperação.


É ainda no exemplo das tecnologias de treinamento desportivo que reside uma ilustração apropriada da dinâmica mais geral do empuxo agonístico que move a ciência e a tecnologia. Sabe-se, por exemplo, que a suplementação ergogênica é legatária da tecnologia alimentar desenvolvida inicialmente para assegurar a nutrição de astronautas. Tendo sido, sem dúvida, a Guerra Fria uma locomotiva que impulsionou a corrida espacial entre EUA e URSS – não por acaso batizada nestes termos olímpicos. Antes disso, já no início do século XIX, a Inglaterra promoveu competições entre os pioneiros da locomotiva a vapor.


E, no entanto, há níveis mais profundos de compreensão dos elos que unem esportividade e tecnologia. Um liame fundamental aqui é a base corporal do desenvolvimento esportivo como do tecnológico. Foi Marshall McLuhan o primeiro a notar que a tecnologia constitui um sistema de próteses; de extensões das capacidades corporais humanas. O rádio amplia o alcance do ouvido; a televisão o faz igualmente, com acréscimo do incremento do olho; o computador inclui algumas das faculdades cognitivas do cérebro, dotando-as de celeridade e eficiência; uma linha de montagem robotizada transforma um único operador em um exército de operários. Desde Marx, a máquina é um sistema de ferramentas. Ora, concebidas como extensões corporais, estas equivalem a uma prótese de madeira, ao passo que aquelas, são homólogas ao exoesqueleto anexado ao corpo de um paraplégico que o controla transmitindo seus processamentos cerebrais por um sinal wireless.


E não foi também a competição, esportiva e política, entre nações o que esteve em jogo na abertura da Copa do Mundo FIFA de 2014, quando um homem paraplégico deu o primeiro chute na bola, movendo-se com uma roupa robótica controlada por seu próprio cérebro? Qual outra motivação além do sonho de superar o complexo de vira-latas brasileiro teria levado o neurocientista Miguel Nicolelis a coordenar a vasta equipe de pesquisa que concebeu e realizou este prodigioso projeto denominado interface cérebro-máquina? Tecnologia esta responsável pela recuperação de movimentos, sensibilidade e controle visceral por pacientes com ruptura total de medula espinhal. Vale à pena refletir seriamente sobre este ponto.


Na esteira de McLuhan, Brian Arthur concebeu a tecnologia como um conjunto multivariado de sistemas técnicos que evoluem de maneira responsiva ao comportamento humano e à sua interação com outros metabolismos vivos. Deste ponto de vista, a tecnologia é o resultado de Gaia produzindo suas próteses (nem todas propriamente salutares, é certo). Inspirado em Maturana e Varela, Arthur argumenta então que a tecnologia é por isso constituída por circuitos cibernéticos autopoiéticos – isto é, que se produzem a si próprios. De fato, argumenta o engenheiro, a tecnologia é constituída de componentes que são eles mesmos tecnologias e que evoluem por inovação combinatória, em simbiose com os organismos, em especial com os humanos que presidem suas transformações.


Ora, sob este ponto de vista, o que a equipe de Nicolelis fez na abertura da Copa do Mundo foi oferecer uma demonstração empírica dos postulados de Arthur. E em um nível de recursividade dos princípios por este enunciados que não seria possível prever. Como vimos, o sistema nervoso opera por meio de uma estratégia populacional, distribuindo informação analógica por vastos circuitos de conexões neurais. Também notamos que os organismos sociais adotam a mesma estratégia conectiva, formadora de populações. Entre os humanos, a linguagem e a cognição fornecem as bases para a articulação social do trabalho – entendido como a estratégia adaptativa mais sofisticada de nossa espécie. A tecnologia, por sua vez, é o produto mais sublime do trabalho social – seja no nível técnico que proporciona o “encantamento da tecnologia”, seja no nível estético da arte, uma “tecnologia de encantamento”, conforme a definição do antropólogo Alfred Gell.


O seminal estudo de Thomas Khun sobre “a estrutura das revoluções científicas” – e tecnológicas, poder-se-ia acrescentar – é conhecido por lançar luz sobre o aspecto competitivo dos paradigmas científicos, na medida em que estes disputam entre si o primado das explicações causais para os fenômenos investigados. Foi mérito de Clifford Geertz acentuar, de maneira inversa e complementar, que os paradigmas de Khun são construções comunitárias, elaboradas por equipes de pesquisa. Eis aqui um nível profundo da esportividade, concebida como fenômeno responsável pela constituição de times que se confrontam entre si, dentro de marcos regulatórios civilizados, a um só tempo cooperando internamente.


De posse destes pressupostos nos habilitamos a conjecturar uma hipótese interpretativa acerca do que se passou com os pacientes da equipe de Nicolelis, que recuperaram funções neurais periféricas mediante treinamento com o exoesqueleto. A recursividade da estratégia populacional e distributiva da biologia parece ter operado em duas escalas distintas, que se fertilizaram reciprocamente: da equipe de pesquisa coordenada pelo neurocientista, de um lado, e das constelações sinápticas que se religaram nas medulas rompidas dos pacientes, de outro. Frente à ruptura das ligações medulares pelas lesões dos pacientes, cientistas e engenheiros cooperaram para mitigar o problema, criando a tecnologia assistiva do exoesqueleto. Impossibilitados de serem conduzidos pela medula rompida, os sinais nervosos foram agora transmitidos por via wireless, de modo a recuperar a mobilidade das pernas dos assistidos. O trabalho coletivo do time de Nicolelis ensejou assim o trabalho coletivo de feixes musculares. Tudo se passa como se a sinergia entre cérebro e músculos, possibilitada novamente pelo artefato robótico, produzisse simultaneamente, por vias aferentes e eferentes, um processo de re-inervação e reconexão medular. Processo disparado pela sinergia social dos pesquisadores e por seu produto, a sinergia robótica da tecnologia assistiva. Em todas as escalas, testemunhamos a recursividade de uma preferência da natureza pela formação de equipes, por assim dizer.


Não dispomos ainda de meios para mapear experimentalmente esta dinâmica. E, no entanto, vimos pelo menos uma demonstração prática bonita, durante a Copa do Mundo de 2014, dos fascinantes postulados teóricos de Brian Arthur. Se a tecnologia constitui de fato fenômeno responsivo às decisões vivas da biologia humana, que estas sejam no futuro orientadas para as formas mais sublimes da competição esportiva, artística, científica e tecnológica. E que as expressões brutalizadas da guerra se encerrem definitivamente com as mazelas sociais planetárias que ora testemunhamos como decorrência dos eventos infelizes na Ucrânia.

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