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TIMES E TORCIDAS NA CIÊNCIA

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


A ciência como atividade intelectual e modo de saber é também fenômeno social e modo de agir. Eis a célebre e herética formulação consagrada n“A estrutura das revoluções científicas” de Thomas Kuhn, conforme a leitura de Clifford Geertz. É certo que o historiador da Física não foi o único, como também nota o antropólogo que lhe resenha, a descrever esta dupla condição ou, melhor dizendo para os propósitos que interessam aqui, dupla identidade da prática científica. Ao texto seminal de Kuhn, seguir-se-ia numeroso grupo de estudiosos da ciência interessados tanto nas suas condições sociais de produção quanto nos seus produtos.


E, no entanto, o melhor estilo geertziano sumariza faceiramente o significado do evento compreendido pela publicação da “Estrutura”, que “tornou-se a imagem mesma do estudo da ciência como iniciativa mundana (...) seu paradigma dominante, pronto para ser imitado, ampliado, desdenhado ou derrubado” (Geertz, 2001, p. 145, grifo meu). Com efeito, a noção de “paradigma” é central na descrição da dinâmica agonística (sempre ela) por meio da qual entram em campo os contendores do jogo científico. Não se trata de metáfora, mas da categoria analítica forjada por Pierre Bourdieu para descrever “o jogo das distinções e das identificações”, travados nos mais diversos domínios da vida social, dentre os quais, a ciência.


O “campo científico”, tal qual o campo de Rugby no qual o jovem Bourdieu teve oportunidade de se exercitar, compreende um território de disputa por recursos, levada a efeito no confronto entre grupos – times e laboratórios – com comportamento coletivo codificado conforme determinado “habitus” – fundamentos técnicos e táticos que constituem o capital específico ou a moeda êmica corrente. Lido à luz da teoria da prática bourdieusiana, o paradigma kuhniano compreende um sistema articulado de princípios explicativos de determinado campo científico que visa ocupar seu território e impor sua visão de mundo. Na arguta definição de Geertz, trata-se de um modelo de solução de quebra-cabeças em que as peças são reunidas pela comunidade pertinente mediante a lógica da Gestalt, a qual também conforma e agrupa seus próprios integrantes pesquisadores. O paradigma é, pois, ao mesmo tempo, princípio lógico, articulador das pesquisas, e estético, aliciador dos seus produtores.


Não por acaso um aspecto central para a compreensão do argumento de Kuhn se refere à definição da ciência como prática de comunidades “auto-recrutadoras (...) e, muitas vezes, claramente competitivas” (Geertz, op. cit., p. 146). O paradigma científico constitui um gênero particular de lógica tática. Esta afirmação não deve escandalizar leitor, de vez que é na própria “Estrutura” que temos oportunidade de ler que um paradigma não rege um assunto, mas um grupo de praticantes. Trata-se, pois, de um conjunto de estratégias, articuladas por pressupostos normativos, para atacar os assuntos e defender os achados daí conquistados.


A ciência compreende, portanto, um vasto conjunto de times, de divisões igualmente variadas, que concorrem entre si pelos louros, pódios e premiações pecuniárias que lhes correspondem, da escala local à internacional. Há rankings, classificações oficiais e apócrifas, ortodoxas e heterodoxas. Como no esporte coexistem, no mesmo campo, competidores profissionais (que ganham a vida treinando nos laboratórios e jogando nos congressos), amadores (cuja atividade de pesquisa divide tempo com outras ocupações que compõem uma remuneração minimamente satisfatória) e super-astros (os quais agregam aos vultosos salários verbas de patrocínio não menos expressivas).


Junto a estas três categorias subsiste a torcida. Mas a divisão é excessivamente esquemática. Temos aqui marcadores pseudo-discretos de um gradiente contínuo de identidades híbridas que se alternam no contexto das relações sociais de produção da ciência. Na educação básica, o professor é profissional e o estudante prodígio é o torcedor de certo paradigma. Os mesmos papéis são desempenhados respectivamente pelo docente e pelo graduando, no nível de ensino seguinte. Mestrandos e doutorandos são pesquisadores aspirantes à profissionalização lograda por seus orientadores, ao passo que as super-estrelas são consagradas, no caso específico do Brasil, pela CAPES.


Chegamos aqui ao ponto central do paradigma defendido em grande parte dos textos deste blog – a luz heurística que a lógica do esporte lança sobre os demais fenômenos sociais. A imagem das torcidas é valiosa para a compreensão do caráter contestado da ciência. Os conflitos violentos entre torcidas de futebol decorrem da necessidade de provas reiteradas de fidelidade ao emblema do time. O critério abstrato de recrutamento de integrantes constituído pelo escudo do clube não inclui necessariamente qualquer afinidade coletiva adicional; de modo que a fraca e contextual coesão que ele produz deve ser ritualmente reforçada por meio do embate com outra torcida.


Ora, quando um paradigma se converte em ideal abstrato, e especialmente quando este ideal inclui algum gênero de relevância social declarada, cresce a probabilidade de o “ideal do nós” de que fala Norbert Elias engendrar um ideal estigmatizado do “eles”, que justifica o embate mais ou menos violento. O ser humano é universalmente dotado de um ponto cego, que oblitera precisamente seus defeitos e vícios e que cresce em espessura quando reforçado por um sentido salvacionista de missão. Este o caso do discurso que converte a luta contra a desigualdade social em critério de identidade coletiva. Este também o caso dos torcedores e defensores dos paradigmas científicos mais fortemente investidos de propósito messiânico. Em geral os teóricos da salvação julgam poder se evadir do salvamento prático e abandonam sem perceber os náufragos à própria sorte.


Eis porque o caráter conflitivo dos paradigmas faz do campo científico um espaço de colisões violentas que extravasa para projetar suas forças contra um inimigo externo – a saber, os negacionistas. Mas o fenômeno do negacionismo é ele mesmo uma reação violenta ao espírito de corpo elitista dos cientistas. O negacionismo de matiz religiosa não constitui novidade, mas ele não logrou ampla adesão, especialmente entre as classes trabalhadoras, antes da generalização do hermetismo como marca distintiva da linguagem científica. Trata-se do paradigma guarda-chuva da ciência contemporânea, por assim dizer, embrulhado na forma da relevância social – mas de uma relevância social esvaziada de sociedade. O exercício de pensar a ciência à luz da estrutura esportiva deve, por conseguinte, nos alertar para o perigo compreendido pela dinâmica segundo a qual pesquisadores, muitos deles críticos à gentrificação do esporte, se convertem na nova gentry do mundo contemporâneo.

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