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TOCA PRA MIM!

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro


Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


Do auge de seus dois anos de vida, desliza correndo o declive do quintal com marcante destemor! Desde que ensaiou os primeiros passos, por volta dos onze meses, desequilibra-se e cai reiteradas vezes, como não poderia deixar de ser. E, no entanto, adquire singular intrepidez ao descer, pressuroso, à pequena planície que lhe serve como estádio inaugural.



Aprendeu cedo a interromper o trabalho no escritório de casa, a perguntar: papai jogar futebol poquinho? Ato contínuo, começa a pular à guisa de aquecimento, reconhecendo o som familiar do computador desligando. Tudo se passa então como se a eletricidade transitasse do aparelho ao menininho, que saltita doravante enquanto durar o jogo.



Papai queno música! Dirige-se àquele que, extasiado, não corrigirá tão cedo as doces notinhas de erros fonéticos. O hit preferido para a ocasião é a “Embolada do futebol”, do Cocoricó. E a interminável sequência de saltos ganha contornos coreográficos.



Aos olhos do pai, com efeito, exibe talento de futebolista e bailarino. Por vezes o adulto se deixa embalar pela ambição paternal e projeta novo Pelé ou Baryshnikov. Colapsando esporte e arte, vislumbra um Garrincha. Trata-se, contudo, de arroubos efêmeros. Nenhuma final de Copa do Mundo ou apresentação do Bolshoi seria dotada de maior potência que o pequeno jogo em curso, no presente. Aqui e agora, o caçula é precocemente bem sucedido! Ou, dizendo o mesmo em outros termos, feliz.



A partida assume contornos dramáticos. Em insólita mistura de trivela e grand jeté o pequenino pisa na bola! Diria um espectador que o esportista errou a técnica. Mas, neste corpinho, estética e eficácia assumem combinação peculiar. De jogador a funâmbulo, de bailarino a capoeira, o ritmo se apresenta para compor equilíbrio dinâmico. De modo que, desta feita, o jovem brincante nem cai, nem vai ao chão. Rodopia apenas.



Olhos esbugalhados, mira o adulto, como a objetivar o risco do qual, por um átimo, se safou. Toca pra mim! Toca pra mim! Corre na direção oposta do campo, imitando os habituais gritos entusiasmados do irmão mais velho. A bola vem com velocidade e direção adequadas. O canhotinho ainda não domina; antes, precipita-se no chute. Imprime ao corpo maior impulso que ao brinquedo. E desta feita é a sorte, esta aliada indispensável de todo esportista, que o livra da queda.



E nada poderia ser mais equivocado que supor não enfrentar o pai desafios motores equivalentes! Acostumado a movimentos brutos e grosseiros, esforça-se ainda com irregularidade por imprimir a motilidade ideal ao objeto do jogo. Em primeiro lugar, há o problema da relação tempo-espaço; a bola deve percorrer a distância completa; nem mais, nem menos, em ritmo preciso! Força, velocidade e deslocamento se combinam de modo inconstante em seus pés, para compor o passe apropriado ao pleno aproveitamento das inclinações do parceirinho de brincadeira. Quantas vezes este dilema não se repetirá, noutros domínios da relação pai/filho, educador/educando?



Em seguida, ou melhor, ao mesmo tempo, importa conferir direção à esfera. Isso não significa transformar em alvo os dançantes pezinhos receptores. Com a devida parcimônia, o toque pode ser realizado um passinho à esquerda ou à direita. Mas a boa medida não ultrapassa vinte centímetros, à velocidade de um metro por segundo. Passe no pé, com a monotonia da repetição, não desafia. Passe distante do corpo não motiva. A “zona de desenvolvimento proximal” vygotskiana cabe, inteira, em um único chute!



Desafio e motivação se coordenam para engendrar o valor da ação. Georg Simmel, sociólogo alemão contemporâneo de Max Weber, sugeriu que o valor é uma função da resistência. O valor é outro nome para a atração que resulta da terceira lei de Newton. À dificuldade oferecida por determinado objetivo corresponde uma atração. Atração e repulsão, estas duas forças primordiais da Física que o filósofo pré-socrático, Empédocles, chamou de amor e conflito, se imbricam para conferir o tempero da vida. Um passe muito fácil, perde em repulsão; não desafia. Outro, demasiadamente exigente, esvanece o magnetismo, perde a atração; desmotiva. A boa medida de um chute perfeito – de uma perfeição relativa à condição da criança – constitui luta hercúlea e salutar para o pai!



Há mais na singela brincadeira. Ela condensa uma das obras mais importantes das Ciências Sociais – a saber, “O ensaio sobre a dádiva”, de Marcel Mauss. Dar algo de valor a alguém é doar-se. É deixar com o donatário algo importante do próprio doador. Esta entrega, levada a curso com gratuidade, produz o vínculo. Há uma energia pessoal materializada na dádiva que opera uma ligação; neste caso, entre pai e filho. A troca de passes, para a criança uma metonímia do jogo de futebol inteiro, é também uma metáfora da vida social nos termos de Mauss.



O princípio da reciprocidade anima a troca de presentes. Não se trata de troca mediada pelo dinheiro, como na aquisição de mercadoria. Aqui a mediação se faz pelo tempo, pela duração da relação social. Quem recebe o oferecimento aceita com isso a junção com aquele que oferece. Não deve pagar imediatamente, como se quisesse evadir-se de dívida. Antes, impõe-se retribuir no futuro, para perenizar a conexão.



De igual modo, uma troca de passes imediata, objetiva, repetitiva, sem o trato cuidadoso da bola, desgasta a ludicidade e a frequência magnética que une progenitor e prole. Importa receber e reter junto de si o presente que carreia o outro, o qual se entrega a si próprio ao transferir o objeto. Uma firula confere o devido sabor. Três embaixadinhas. Uma lambreta. Pedalada. Matada de cabeça. E, finalmente, a retribuição do passe. Trata-se de encantar o jogo. A estética, caminho para a ética, gesta o amor e robustece o elo social. Eis porque a sociedade da mercadoria, com sua dinâmica de consumo individual, isola as pessoas; quebra as relações.



Algumas traduções apresentam o texto de Mauss sob título alternativo, “Ensaio sobre o dom”. Esta versão nos remete ao duplo sentido do dom-doação e do dom-vocação. A origem desta homonímia reside na caracterização do talento pessoal como dádiva Divina. Se, de fato, for o caso, o Pai celestial conferiu ao menino propriedades muitíssimo mais valiosas que os talentos ambicionados pelo pai terrestre. Enquanto este alimenta quimeras do sucesso esportivo ou artístico, Aquele confere ao pequeno o sucesso ontológico. Ser feliz no jogo elementar da troca de passes. Oxalá perpetue-se esta plenitude minimalista!


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1 Comment


caio serpa
caio serpa
Sep 02, 2020

Camarada, lendo de início não me parecia haver dúvidas que se tratava de nosso grande reizinho artur!!!! Era óbvio que se tratava de lembranças de um pai babão pelo seu primogênito, mas confesso o quanto fiquei surpreso ao ver que se tratava do menor... Primeiro, impressionante como o tempo passa rápido, outro dia não era um bebe que sequer engatinhava ???? Mais impressionante ainda ver, que mesmo não se tratando de seu primeiro, o segundo ainda causa tanta admiração, carinho e pitadas de vislumbramento imaginativo quanto o primeiro , kkkkk !!!! Grande saudades de ti, michelle e a família toda, que esta maldita praga nos permita voltar a beber uma artesanal bem gelada!!!!

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