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TÁTICAS DE SAÚDE INTEGRAL

Foto do escritor: Wecisley RibeiroWecisley Ribeiro

Wecisley Ribeiro do Espírito Santo


A prática esportiva regular se correlaciona com o incremento do metabolismo humano, em múltiplas escalas. Moléculas se articulam em níveis salutares de homeostase. Nutrição e respiração celular se harmonizam dinamicamente, ensejando constituição equilibrada dos tecidos, funcionalidade orgânica, resiliência e flexibilidade comportamental do organismo. A saúde mental é promovida por meio da sociabilidade que emerge na interação coletiva dos times.


Mas isto não é tudo. Evidências recentes lançam luz sobre nexos ainda mais robustos entre a lógica social do esporte e a sanidade humana geral. Relações de pertencimento e identidades coletivas afetivamente intensas aumentam os níveis de conectividade neural e de inibição da expressão gênica de doenças. Experiências compartilhadas de êxito esportivo estão associadas à coesão social das equipes e ambas ampliam os indicadores agregados de intensidade afetiva e pertencimento. A sobreposição destas variáveis permite conjecturar que padrões de conectividade em escalas distintas – a saber, no sistema nervoso e nos coletivos humanos – provavelmente se correlacionam de modo linear.


As condições de felicidade, no esporte, de um lado, e na vida social, de outro, são essencialmente as mesmas. Elas podem ser descritas estruturalmente em termos de altos índices agregados de conexão. Entre equipes esportivas, a menor dependência dos talentos individuais – o que significa estratégia socialmente distribuída pelos membros da equipe – conduz a probabilidades de vitória da ordem de mais de 80% nos casos do basquete, futebol, rugby, futebol americano, críquete e no jogo digital intitulado Defense of the Ancients. Em contraste com a mesma lei de distribuição populacional das estratégias biológicas, crianças que sofreram negligência na primeira infância, criadas em abrigos de Bucareste e privadas de lares afetivamente intensos, demonstraram atividade alpha (indicadora do metabolismo neuronal) reduzida não regiões frontais e centrais do córtex cerebral, bem como alterações no processo de metilação do DNA das células T do sistema imunológico.


Em ambos os casos tomados como unidade comparativa (esporte e vida familiar) quanto mais as energias despendidas e produzidas por cada participante do grupo forem aproveitadas em empreendimentos cooperados, maior a harmonia com a lei geral da adaptação distribuída e populacional adotada pela natureza. Convergências entre duas ou mais ações individuais produzem sistemas abertos de fluxos energéticos aproveitados para fins úteis. Na medida em que a ação humana é invariavelmente social, um marcador importante de eficiência é a sinergia entre ações de múltiplas pessoas que convivem no mesmo ambiente. Este equilíbrio dinâmico entre atitudes de integrantes de uma família, vizinhança, equipe de trabalho ou time esportivo reveste-se, a um só tempo, de estética e eficácia, podendo ser concebido assim como uma bela definição de saúde; de vez que estratégias distribuídas dotam os coletivos de maior plasticidade comportamental e resiliência.


Ora, o esporte oferece um laboratório para observação destas relações complexas, na medida em que as reduzem à sua forma elementar. Em uma partida de futebol, basquete ou vôlei cada jogador precisa renunciar individualmente à posse exclusiva do recurso material revestido de máximo valor no contexto do jogo, a saber, a bola. Este objeto dotado de uma força gravitacional especificamente esportiva, por assim dizer, chega à meta com mais celeridade e condições de êxito sempre que circula com fluidez por cada atleta e por todos eles e sempre que sua posse seja tão episódica quanto possível.


No vôlei esta lógica é levada à sua expressão máxima. No futebol, entretanto, um driblador individualista demonstra, por efeito de contraste, que a vitória se correlaciona com a liquidez dos passes. Este atributo sempre levará uma equipe a grandes realizações; em dez jogadas, cerca de oito lograrão seu objetivo. O indivíduo que pretenda driblar sozinho o time adversário, ao contrário, só raramente o fará; a cada adversário driblado crescem as chances de um desarme pelo marcador seguinte. É mais fácil ganhar na mega-sena que driblar individualmente um time inteiro. Ganhadores da loteria aparecem todas as semanas ao passo que poucas vezes a história do futebol testemunhou um gol que se seguisse a uma sessão de dribles sobre onze marcadores. Para ganhar o jogo importa doar a bola; lógica social do esporte que resume o Ensaio sobre a dádiva de Marcel Mauss, tantas vezes citado aqui.


Afirmar que o funcionamento pleno desta mecânica esportiva expressa a saúde coletiva do time não é metáfora, mas metonímia. Trata-se de um caso particular da lógica mais geral da saúde humana, sempre invariavelmente coletiva. Na família, na escola, no trabalho, os níveis de saúde estão elevados quando a produção e transmissão de energia no interior do sistema social (compreendidas como os comportamentos individuais no interior do grupo) são aproveitadas em circuitos fluidos, caracterizados pelo princípio triádico que consiste em dar, receber, retribuir, conforme ensina Mauss.


Falei de liquidez dos passes no esporte; não se trata de mera figura de linguagem. No sentido físico – do fluxo de um rio que segue seu curso contornando com fluidez os acidentes e lapidando suas arestas – tanto quanto no sentido monetário – entendido como oferta de moeda –, a liquidez do passe, do oferecimento de algo de valor, compreende um aspecto quantitativo e outro qualitativo. Mais passes, mais unidades de cooperação, conduzem uma equipe à qualificação ininterrupta. No basquete os líderes em assistências são invariavelmente também os que imprimem as curvas mais inverossímeis à bola, que desvia dos marcadores para chegar teleguiada às mãos do companheiro. Não é um acaso que assistências gestem amizades. O garçom, isto é, aquele que serve o companheiro que faz a cesta, eleva-o à condição de pontuador. E não é senão erguendo os amigos que robustecemos a amizade.


O sofrimento, ao contrário, resulta do isolamento. A etiologia do suicídio radicada no insulamento social, diagnosticada por Durkheim, é ainda bastante convincente. Não é outra a causa da epidemia de suicídios contemporânea senão o individualismo. Experimentemos nos relacionar intensamente com as pessoas que a vida nos traz e a melancolia desaparece magicamente. A robustez dos vínculos esportivos, é certo, não chega aos níveis do amor, senão raramente. Mas o passe da bola é a forma rudimentar do passe de mágica ensejado pelo amor em nossa saúde integral. A OMS define saúde como um estado de bem-estar físico, mental e social. Das trocas celulares à cooperação social, passando pelo concerto metabólico dos órgãos e organismos, é a mesma estratégia distribuída da vida que vigora. Esta mesma que pode fazer de um time tático, campeão, e de um atleta com mentalidade concentradora da habilidade técnica um fracasso esportivo e ético.

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