Atualmente, existem mais de 30 habilitações diferentes em engenharia. O número é tão extenso que é difícil até mesmo estabelecer quantos e quais são exatamente esses cursos. O certo é que há oferta para todos os gostos: química, mecânica, mecatrônica, elétrica, civil, naval, aeronáutica, industrial, florestal, ambiental, de alimentos, de produção, de minas, de computação, de sistemas, entre vários e vários outros.
Tão grande tem sido o aprofundamento dos conhecimentos de cada uma dessas áreas, acompanhado por uma equivalente segmentação dos seus respectivos mercados de trabalho, que não ocorreria a ninguém nos dias de hoje a existência de um único e generalista curso de engenharia de todas as coisas. Um profissional capacitado para projetar pontes não detêm os conhecimentos necessários para projetar navios ou manejar o replantio de florestas. Os conhecimentos necessários para cada uma dessas atividades se tornaram tão extensos, complexos e especializados que já não é razoável esperar que um mesmo indivíduo possa domina-los todos.
Apesar da segmentação, as diferentes engenharias compartilham também certos conhecimentos. Usualmente, estudantes dos diferentes cursos de engenharia têm um núcleo inicial de formação comum. Existe unidade na diversidade, portanto. Nesse sentido, as engenharias oferecem um exemplo interessante e instrutivo.
Na Educação Física, porém, tudo se passa diferente. A crença fundamental que preside a estruturação dos currículos dos cursos de graduação dessa área supõe que ainda é possível integrar em um único processo de formação profissional todos os conhecimentos possíveis da educação física. Assim, espera-se que ao final de 4 anos o estudante esteja apto a atuar em hospitais e unidades de atendimento do Serviço Único de Saúde, também em espaços de lazer e recreação diversos, assim como na gestão esportiva de clubes privados ou órgãos públicos, bem como em academias de ginástica e musculação, mas ainda na iniciação esportiva e no treinamento avançado de alta performance, seja no futebol, no basquete, no voleibol, na natação, no judô, na dança, no fisiculturismo ou no tênis.
Obviamente, trata-se de um programa irrealizável na prática. Cada uma dessas modalidades ou segmentos de atuação constituem universos próprios, com tradições, vocabulários, costumes e sobretudo saberes especializados, cujo conhecimento verdadeiro exige não apenas um contato rápido e superficial, mas uma exposição prolongada e um mergulho dedicado nos vários aspectos que lhes constituem.
A despeito desta constatação mais ou menos evidente, as faculdades de educação física ainda tardam em realizar quaisquer mudanças na estrutura tradicional que lhes orienta. O resultado dessa insistente adoção de um programa de formação megalomaníaco e inexequível é a superficialidade, a ignorância e logo a baixa qualificação e a desvalorização social e econômica do trabalho realizado nesta área. Ao final, quem em teoria pretende saber tudo, na prática acaba condenado a não saber nada. Escolhas quase sempre implicam renúncias. Assim, alguém que decida estudar Educação Física está abdicando de estudar Sociologia ou Matemática, a despeito de existirem relações entre essas e várias outras áreas do saber.
Não por acaso, estudantes e profissionais de educação física comprometidos com a sua própria qualificação para o trabalho buscam a formação que de fato precisam em cursos livres oferecidos em toda sorte de instituições, incluindo, atualmente, o You Tube. No limite, tudo parece melhor e mais adequado que os conteúdos oferecidos pelas faculdades de educação física, tão flagrantemente inadequados e apartados das necessidades práticas do mundo real.
Naturalmente, os estudantes não podem ser responsabilizados pelo fracasso das instituições de ensino superior, cuja tarefa deveria ser justamente a de ensinar. Cabe interrogar aos professores dessas instituições acerca do que está se passando e o que pode ser feito para aprimorar o funcionamento dessas instituições a fim de tentar recuperar a relevância social dos cursos superiores nessa área. O que não é de modo algum admissível é que as universidades sejam reduzidas a uma mera formalidade protocolar a que os estudantes se submetem a fim de obterem um diploma que lhes autoriza o acesso a determinados mercados de trabalho. Universidades são ou devem ser a morada da sabedoria e da aprendizagem, não uma alfândega que verifica papéis e cobra tributos que permitem o acesso a determinados territórios.
O grau de conhecimento acumulado no âmbito da educação física não parece tão diversificado e heterogêneo quanto o das engenharias, de modo que a criação de dezenas de cursos diferentes, como acontece naquela área, soaria injustificável. No entanto, parece razoável que ao menos três segmentos relativamente bem definidos possam já ser visualizados na Educação Física.
O primeiro é a “Licenciatura”, voltada, como se sabe, para a atuação em escolas. O segundo é a área dos “Esportes”, enquanto o terceiro é a área das “Atividades Físicas e Promoção de Saúde”.
Além de um estoque de conhecimentos particular, cada um desses segmentos tem também mercados de trabalho relativamente independentes, com demandas e modos de recrutamento peculiares. Assim, quem se qualifica para um deles e consegue inserção profissional, não necessariamente logrará fazê-lo em outro, exceto se houver disposição para um processo de transição de carreira, que mesmo assim pode ser longo e difícil.
A atual configuração do mercado de trabalho da educação física, aparentemente inédita, depõe em favor de um novo arranjo que conte três cursos diferentes, ao invés do modelo atual, com um único curso (Educação Física), em duas modalidades (Licenciatura e Bacharelado). Embora o mercado consumidor de serviços de esportes e atividades físicas tenha se expandido significativamente nas últimas duas décadas, a oferta de mão de obra para esse setor se expandiu a um ritmo e proporção muitíssimo maior. Para citar apenas um exemplo, que constitui um dos mercados mais relevantes e de maior crescimento, o número de academias de ginástica e musculação cresceu cerca de 70% entre os anos 2000 e 2020, segundo estimativas da Associação Brasileira de Academias (Acad). No mesmo período, o número de formados em cursos de graduação em educação física cresceu nada menos que 736%, segundo dados do Censo de Educação Superior, do Ministério da Educação (Inep). A magnitude dessa desproporção é realmente colossal. A oferta de mão de obra cresceu mais que 10 vezes o crescimento de um dos maiores e mais importantes segmentos dessa área.
Em tais circunstancias, o mercado de trabalho tende a se tornar agressivamente competitivo, dado que a mão de obra disponível excede a demanda efetiva do mercado consumidor. O recurso em última instância dos trabalhadores nesse contexto é baixarem o valor do seu trabalho, tentando aumentar as suas chances de conseguirem ocupação. De fato, entre os anos 2003 e 2020, o crescimento acumulado dos salários médios da Educação Física (199%) foi menor que o salário mínimo (333%) - em valores atualizados pelo IPCA de abril de 2022.
Nesse contexto, um trabalhador que pretenda saber um pouquinho de muitas coisas, tal como preconizado nos tradicionais currículos dos cursos de graduação em educação física, muito possivelmente estará condenado ao fracasso profissional. Conhecimentos superficiais obtidos a duras penas nos bancos universitários simplesmente não serão suficientes para este mercado de trabalho crescentemente competitivo. O destino provável de um trabalhador com esse perfil genérico e superficial tende a ser a expulsão desse mercado de trabalho, restando-lhe então o último recurso de buscar outras ocupações quaisquer que não nessa área, para os quais as universidades tampouco lhe prepararam, o que é trágico e ao mesmo tempo perverso.
Por outro lado, currículos menos extensivos e mais intensivos, têm o potencial de oferecerem conhecimentos que possam ser convertidos mais facilmente em ferramentas mais eficientes para essa árdua e implacável competição do mercado de trabalho, que na verdade é uma selva onde não há compaixão, nem misericórdia. Novos arranjos pedagógicos e curriculares nesse sentido poderiam elevar a competitividade de alguns trabalhadores, embora não eliminaria a competição propriamente dita, de modo que existiriam ainda poucos vencedores e muitos perdedores. Trata-se de situação sempre lastimável e deprimente. Mas em um cenário assim tão inescapavelmente cruel, de que lado é preferível estar?
A reforma mais ampla desta dura e triste realidade está fora do alcance imediato das universidades, que são instituições muito relevantes e que podem muito, mas não podem tudo. Reformar todas as injustiças do mundo está fora do alcance das universidades. Todavia, oferecer educação de alto nível e qualificação profissional atualizada e compatível com as atuais exigências do mundo do trabalho talvez não seja tão banal e dispensável assim. Conforme um lugar comum que circula entre professores, a educação muda as pessoas, e as pessoas mudam o mundo. No caso da educação superior, especificamente, o horizonte de fornecer educação capaz de qualificar indivíduos para transformarem o mundo por meio do trabalho e do estudo parece uma utopia que ainda soa bela.
Novos currículos focados em segmentos específicos da atuação profissional do universo da educação física encerrariam ainda a pequena grande vantagem de não precisarem se submeter às diretrizes curriculares emanadas do Conselho Nacional de Educação, frequentemente tão arbitrárias e suspeitas de atenderem a interesses obscuros. As atuais Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Educação Física (Resolução n. 6 de 18 de dezembro de 2018) mencionam explicitamente em seu parágrafo único do artigo 1, que tais orientações se aplicam única e “exclusivamente”, diz o documento, a “cursos de graduação denominados de educação física”, o que exclui, portanto, Bacharelados em Esportes ou Bacharelados em Atividades Físicas e Saúde.
A Universidade de São Paulo, onde repousa a vanguarda científica da América Latina, tem ousado experimentar arranjos curriculares inovadores. A sua Escola de Educação Física e Esporte conta com um Bacharelado em Esportes, enquanto a Escola de Artes, Ciências e Humanidades oferece um curso de graduação em Lazer e Turismo. A Universidade Estadual de Campinas também oferece um Bacharelado em Esportes.
Porque as demais universidades demoram tanto em lhes seguir o exemplo?
Diante das crescentes dificuldades que caracterizam o atual mercado de trabalho da educação física, as lideranças intelectuais da área têm o dever moral de agir. Reformas curriculares e modernizações pedagógicas da formação em educação física fazem parte da autonomia de que gozam os centros universitários. As suas realizações, portanto, dependem mais de determinação da vontade do que de recursos materiais. Os meios necessários para tanto são modestos e já estão disponíveis. Falta talvez firmeza de propósitos e clareza de pensamento para a adequada compreensão dos problemas que nos afetam.
Commentaires