Cleber Dias
Bem no início da pandemia, encontrei consolo e motivação em um livro simplesmente extraordinário, intitulado Pós Guerra, do eminente historiador Tony Judt. Trata-se de um estudo sobre a Europa logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Em meio a tantos problemas e sofrimentos, olhar para o que nossos antepassados já enfrentaram e superaram pode ajudar a dar confiança no presente e esperança para o futuro.
O cenário da Europa depois da Segunda Guerra era nada menos que dantesco. Depois de seis anos de conflitos, que ocuparam praticamente todo o continente, a Europa estava literalmente destruída. Em maio de 1945, quando 40 mil toneladas de bombas foram lançadas apenas nos últimos 14 dias do confronto, Berlim tinha 75% dos seus prédios inabitáveis. Por toda a Alemanha, havia 20 milhões de pessoas sem teto. Na Rússia, onde 70 mil vilarejos e 1.700 cidades foram destruídas, esse número era de 25 milhões de pessoas. Na Iugoslávia, 20% de todas as residências do país foram destruídas, além de 50% dos gados, 60% das estradas e 75% das terras cultivadas. No geral, estima-se que mais de 30 milhões de pessoas encontravam-se deslocadas, extraditadas ou deportadas após o fim do conflito.
Entre os que não fugiram, não foram expulsos, não foram presos ou não foram mortos, restava lidar com os escombros. Em vários lugares, porém, praticamente não havia lei nem ordem. Saques, desapropriações e execuções sumárias foram parte do cotidiano. Mas isso não era tudo.
Como as fazendas e plantações foram em grande parte destruídas, não havia comida. Historiadores costumam se referir ao período como o inverno da fome.
Mesmo se houvesse comida, contudo, não haveria meios de transportá-la, pois os sistemas de transportes estavam em frangalhos. Na Rússia, sucumbiram aos bombardeios 60 mil quilômetros de ferrovias. Na França, destruíram-se 73% das locomotivas e 75% de toda a frota de navios, uma proporção de destruição semelhante da que foi registrada na Polônia.
Mesmo se houvesse comida disponível e formas de transportá-la, não haveria meios de compra-la. O sistema financeiro europeu ou o que sobrou dele depois da guerra também era caos e desordem. Havia escassez de espécie e as moedas sofreram brutal desvalorização. Na verdade, já não havia bem referência acerca do valor monetário das coisas, o que apenas aumentava a desorientação geral. No final do conflito, países como a Grã-Bretanha invertiam cerca de metade do PIB nos custos da guerra.
Além da fome, pobreza, destruição e tumulto, havia também as doenças. Problemas como conjuntivite em decorrência da falta de vitaminas ou desinteria por causa da poluição das águas causada pelos danos dos sistemas de esgotos afligiram duramente os sobreviventes daquela hecatombe. De cada 100 crianças que nasciam, nada menos que 66 morriam. Houve ainda doenças provocadas pelos cadáveres em decomposição.
Os cadáveres, aliás, materializavam os piores horrores da guerra. Estima-se que entre 70 e 85 milhões de pessoas morreram na guerra, o que equivaleria a cerca de 3% da população mundial do período. Os mortos incluem civis e militares, tanto em combates diretos quanto em consequências dos seus efeitos. Na Polônia, um dos países mais atingidos em vidas humanas, 20% de todos os cidadãos morreram.
A Covid-19 já vitimou quase 3 milhões de pessoas ao redor do mundo, mais de 23 ou 28 vezes menos do que a Segunda Guerra. Obviamente, a dor dos que perderam um familiar, um amigo, um conhecido ou um colega de trabalho é incomensurável. Todavia, vendo de uma perspectiva histórica, temos ainda intactos estradas, transportes, fazendas, plantações, fábricas, escolas, sistemas de abastecimento de água e todos os meios para nos reerguermos. Mesmo os sobreviventes da Segunda Guerra, carentes de várias dessas coisas, puderam reconstruir suas vidas. Nós também o faremos.
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