Acredito que parte dos problemas do nosso cotidiano de trabalho decorre de uma confusão sobre o papel do representante. O que exatamente faz um representante e qual é o modo mais adequado da sua atuação?
Segundo um certo ponto de vista, que acredito ser predominante entre nós, o representante deve ser um porta-voz do grupo a quem ele representa. Assim, o representante de um departamento em um colegiado, por exemplo, seria o mensageiro das opiniões e preferências deste grupo naquela instância, bem como um informante das notícias do colegiado frente ao grupo que ele representa. Nesse sentido, o representante seria apenas um meio através do qual uma vontade coletiva maior e mais soberana se expressa.
A disciplina de histologia deve ter 30 ou 60 horas? A disciplina de fisiologia deve ter pré-requisitos? Os cursos de licenciatura e bacharelado devem ter um ciclo básico comum ou não?
De acordo com essa concepção, o representante, por si só, não possuiria autoridade ou mesmo legitimidade para tomar decisões a respeito de assuntos tão importantes como esses sem antes consultar o grupo a quem ele representa. Sua missão é se informar sobre as pautas das instâncias deliberativas, prospectar a opinião do grupo a quem ele representa nesses órgãos e então agir de acordo com a vontade majoritária deste grupo. Agir por conta própria e em conformidade aos seus próprios juízos seria como uma traição; um gesto individualista e antidemocrático.
Essas compreensões se fundamentam, entre outras coisas, em uma celebração da participação em si mesma. Segundo esse ponto de vista, democracia é sinônimo de participação direta, de modo que quanto mais participação houver, melhor. A participação, segundo esse ponto de vista, seria sempre boa e virtuosa, enquanto quaisquer restrições à participação seriam sempre maléficas e, no limite, antidemocráticas.
Em princípio, tudo isso pareceria aceitável. Ao refletirmos melhor sobre o assunto, porém, uma série de incoerências e contradições desse modo de pensar vêm à tona.
Se o representante devesse atuar como uma espécie de mero porta-voz do grupo a quem ele representa, seria mais prático e mais lógico simplesmente prescindir da intermediação de um representante. Nesse caso, todos os assuntos poderiam ser submetidos a uma consulta ampla e irrestrita, um tipo de plebiscito permanente, em que cada um expressaria suas preferências por meio de uma participação direta, sem a necessidade de um porta-voz ou intermediário. É algo mais ou menos assim, aliás, o que defendem teorias da democracia chamadas pelos cientistas políticos de “participacionistas”, que julgam regimes representativos como democracias excessivamente imperfeitas.
A arquitetura institucional da UFMG, no entanto, opera em um regime representativo e não participativo. Todas as instâncias deliberativas da universidade funcionam através da indicação ou da eleição de representantes.
A tentativa informal de fomentar mecanismos participativos em um contexto institucional inteiramente representativo, por mais bem intencionada que seja, acaba criando um curto-circuito, onde os indivíduos dotados do poder de falar e agir em nome de um grupo, isto é, os representantes, se veem destituídos das atribuições que a própria arquitetura institucional lhes confere.
Ao mesmo tempo e em sentido contrário, em um segundo efeito colateral dessas tentativas mais participativas, instâncias institucionais, especialmente as Assembleias Departamentais, podem se ver obrigadas a deliberar sobre assuntos que excedem suas competências.
Decisões sobre o modo de funcionamento dos cursos, por exemplo, cabem aos órgãos Colegiados e não aos Departamentos. Os Colegiados, afinal, existem com o propósito de “elaborar o currículo do curso”, conforme se lê no Estatuto da Universidade, bem como “coordenar e executar os procedimentos de avaliação do curso” ou ainda “decidir das questões referentes a matrícula”, entre outras atribuições.
Todavia, na medida em que os representantes dos Departamentos nos Colegiados não se sentem autorizados a deliberar diante da instância instituída para esse fim sem antes consultar o grupo a quem eles representam, eles buscam, então, as Assembleias Departamentais a fim de lhes pedir orientações acerca do que dizer e fazer. Qual argumento apresentar? Qual decisão tomar? Como se comportar na votação?
Essa situação produz um impasse incontornável. Os representantes se negam a exercer o poder que a arquitetura institucional da universidade pressupõe, demandando discussões, orientações e decisões das Assembleias Departamentais, mas que não gozam de competências e atribuições para tanto. Assim, ou bem os representantes não se subordinam ao desejo majoritário das Assembleias Departamentais, ou bem os Departamentos extrapolam suas competências e passam a deliberar sobre assuntos que não lhes competem.
A rigor, os Departamentos, ou melhor dizendo, as Câmaras Departamentais, têm 10 atribuições explicitamente mencionadas no Estatuto da Universidade, sendo que apenas 2 delas dizem respeito aos Colegiados de curso, quais sejam: i) “estabelecer os programas das atividades acadêmicas curriculares do Departamento e propor aos Colegiados de Curso os créditos correspondentes”; ii) “designar, quando for o caso, representantes do Departamento junto a Colegiados de Curso” (conforme itens II e VIII do art. 49).
Não deve passar despercebido que essas atribuições competem às Câmaras Departamentais e não às Assembleias, que segundo o mesmo estatuto, têm poderes consultivos, conforme já tentei chamar atenção em outra ocasião (veja aqui).
A participação dos Departamentos nos Colegiados, portanto, se dá apenas com relação a esses dois aspectos: designação de representantes, de um lado, e estabelecimento de programas e créditos, de outro. Qualquer iniciativa fora disso extrapolaria as competências do Departamento, em um tipo de ingerência institucional indevida. Os Colegiados são órgãos dotados de autonomia e competências explicitamente previstas no ordenamento estatutário da Universidade. Os Departamentos participam dos Colegiados de cursos, mas apenas com relação aos tópicos previstos no Estatuto e apenas também por meio de seus representantes. São os representantes dos Departamentos e apenas eles quem têm voz e voto nas deliberações do Colegiado.
O bom funcionamento da instituição depende de que tudo isso seja rigorosamente respeitado. Tentativas informais de fomentar uma cultura política “participacionista” em um ambiente institucional todo organizado por meio de representantes, têm ainda a desvantagem de trazerem consigo várias outras consequências nocivas.
Qualquer grupo tem suas divergências, de modo que raramente há uma única opinião a ser representada. Subordinar todas as decisões apenas à vontade da maioria equivaleria, então, a converter os complexos e imperfeitos mecanismos de uma democracia representativa a uma mera “tirania da maioria” ou uma “democracia plebiscitária”, conforme expressões consagradas pelas teorias políticas, isto é, um ordenamento “formalmente democrático, mas efetivamente censitário”, para usar outra formulação bem conhecida nesses domínios.
Nesses termos, não haveria salvaguardas para opiniões minoritárias, que ficariam privadas de se fazerem representar nas instâncias deliberativas, empobrecendo, assim, o repertório de soluções institucionais possíveis.
Além disso, conforme reconhecem até mesmo teóricos políticos que criticam instituições representativas, “a maior parte das pessoas, na maior parte do tempo, é apática, desinformada e desinteressada”, para apelar a palavras de um renomado estudioso brasileiro do assunto (Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília). A suposição de que todos os membros de uma comunidade têm tempo, competência, interesse e disposição para tomar parte, de maneira bem informada, de decisões caras ao funcionamento de uma instituição, portanto, é fantasiosa e irrealista.
Paradoxalmente, o culto à participação acaba por criar, involuntariamente que seja, uma estrutura de desincentivos à participação. Nesse ambiente, até indivíduos que nunca participaram e que não pretendem nunca participar do laborioso trabalho de um órgão colegiado poderiam seguir tentando influenciar as decisões dessa instância deliberativa, no que poderíamos chamar de “participação sem participação”. Trata-se, em suma, de um arranjo conveniente aos espertalhões que querem participar, mas sem assumir os ônus e as responsabilidades da participação.
Finalmente, ao se verem obrigados a discutirem os meandros de outras instâncias institucionais, os Departamentos congestionam suas pautas com assuntos que não lhes competem, privando-se, assim, do tempo para se dedicarem aos assuntos que lhe competem, o que traz prejuízos para o bom funcionamento do próprio Departamento e logo de outros órgãos, em mais uma outra flagrante contradição incitada por essa cultura política de tentar fomentar informalmente canais de participação que formalmente inexistem.
A saída desse labirinto é tão somente seguir com rigor o que está determinado no estatuto da UFMG, superando, assim, uma visão pouco sofisticada e em muitos aspectos equivocada de participação democrática. Pois conforme prescrevem as teorias políticas sobre o assunto, um dos requisitos da representação democrática é o abandono das exigências de autorização. Dito de modo mais prosaico e aplicado ao contexto que nos interessa, só deveria haver uma maneira de participar das decisões de órgãos colegiados, que é participando dos órgãos colegiados.
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